As palavras de Bento XVI aos professores universitários são um convite à reflexão sobre o significado do ensino, que nunca pode limitar-se à transmissão de verdades parciais desligadas da fonte do seu sentido global
O discurso de Bento XVI proferido a 19 de Agosto no Mosteiro de S. Lourenço do Escorial perante jovens professores universitários, constituiu, pela sua forma e conteúdo, uma peça magistral, no sentido mais genuíno da palavra: são ideias de um mestre que transmite aos seus discípulos ou colegas mais jovens, orientações sapienciais extraídas do tesouro da sua experiência e reflexão sobre a natureza da vida universitária. São orientações muito pertinentes numa altura em que a instituição universitária atravessa uma profunda crise de identidade, ameaçada que está pela actual invasão de lógicas utilitárias e mercantilistas, que, aproveitando a situação de falta de vontade para buscar a verdade última sobre o ser humano, desgastam a verdadeira natureza da universidade.
Neste contexto, Bento XVI achou oportuno relembrar a natureza e missão da universidade, actualizando o conteúdo das palavras de Afonso X, o Sábio, que, já no século XIII, a descrevia como «assembleia de mestres e alunos com vontade e compreensão para aprender os saberes». Estas palavras recordam qual é a alma desta instituição, e quão fundamental é a sua contribuição na tarefa de recuperar a confiança na capacidade humana de buscar a verdade e viver de acordo com a mesma. Deste modo, as novas gerações encontrarão pontos de referência firmes para construir as suas vidas, tal como é proposto na mensagem do Papa aquando da recente Jornada Mundial da Juventude, realizada em Madrid.
A casa onde se busca a verdade
Consciente do contributo que a universidade pode e deve dar com o objectivo de formar pessoas íntegras, Bento XVI chamou a atenção, explicitamente, para o perigo de reduzir a missão da universidade a, apenas, formar profissionais competentes de acordo com as regras ditadas por ideologias ou pelo mercado. É o perigo de limitar a formação, dada pela universidade, à transmissão de conhecimentos técnicos ou imparciais e esquivar-se às interrogações actuais que constituem uma luta por abrir caminho no espírito e no coração dos jovens.
É, exactamente, neste contexto que se torna particularmente urgente que a universidade tome consciência da sua origem e da tradição herdada, pois «o verdadeiro conceito de universidade é, exactamente, o que nos defende dessa visão redutora e distorcida do ser humano».
Efectivamente, a universidade como «casa onde se busca a verdade própria da pessoa humana» não é compatível com o relativismo e o cepticismo que destroem o amor à verdade, entregando o homem nas mãos de outros interesses, pragmáticos ou ideológicos, cada vez mais mesquinhos: «A universidade encarna um ideal que não deve ser desvirtuado nem por ideologias fechadas ao diálogo racional, nem por servilismos a uma lógica utilitária do simples mercado, que vê o homem como um mero consumidor».
Responsáveis por um ideal
Nesta conjuntura, o Papa convidou os jovens professores universitários a sentirem «a responsabilidade deste ideal que recebemos dos nossos antepassados», a reconhecer-se como seus «continuadores numa história bem diferente da sua, mas em que as questões essenciais do ser humano continuam a exigir a nossa atenção e estímulo para ir em frente».
Seguir o testemunho das gerações de universitários que nos precederam e concretizar, no actual momento histórico, semelhante ideal universitário constitui um desafio apaixonante, que, na situação actual, só é possível enfrentar indo ao âmago da vida universitária, superando os obstáculos estruturais e culturais que, nos nossos dias, constituem o perigo mais iminente. Estes obstáculos podem ser diferentes dos de outras épocas; contudo, não são insuperáveis desde que os protagonistas da vida universitária recuperem o sentido do seu próprio papel. Isto é comprovado, de modo eloquente, pela própria experiência de Bento XVI, que relembra a enorme escassez de meios materiais por que passava a universidade alemã durante o pós-guerra que nada podiam relativamente à «ilusão de uma actividade apaixonante», como era a relação com os colegas das diferentes disciplinas e o desejo de dar respostas às inquietações prementes e essenciais dos alunos, nessa época».
Neste duplo desejo que encerra, em grande parte, a ideia de universidade definida nas palavras de Afonso X, o Sábio, esboça-se a prioridade de uma visão de relacionamento da universidade, que tem como objectivo o crescimento das pessoas. Esta visão contrasta com a actual ênfase dada aos aspectos do sistema e do progresso da organização universitária, em que o crescimento pessoal é quase um efeito colateral. Todavia, compete-nos esperar que, de uma revitalização pessoal da autêntica vocação universitária, surja um estímulo para iniciar uma regeneração desta instituição, que, actualmente, sofre de uma evidente asfixia estrutural.
Os verdadeiros mestres
Tem muito a ver com o despertar o interesse dos verdadeiros mestres que Bento XVI descreve em poucas palavras como «pessoas abertas à verdade total nos diversos ramos do saber», que sabem «escutar e viver no seu próprio interior esse diálogo interdisciplinar» tão necessário para ultrapassar a parcialidade, a dispersão dos saberes; «pessoas convictas, sobretudo, da capacidade humana de avançar no caminho da verdade».
Nestas palavras, encontra-se, sem dúvida, um convite à reflexão sobre o significado do ensino, que nunca se pode limitar à transmissão de verdades parciais, desinseridas de contextos; que nunca pode ser reduzido a «uma escola de transmissão de conteúdos», mas que deve ser entendido, como «um conjunto de jovens que haveis de compreender e querer, em quem haveis de despertar essa sede de verdade que possuem, no mais fundo do seu ser e esse desejo de superação». Os jovens, com as suas sinceras inquietações, tantas vezes escondidas por eles próprios, são, em última instância, o estímulo desse «conjunto de professores e alunos», unidos pela «compreensão e vontade de aprender os saberes», sem os quais não há universidade.
Contudo, essa aprendizagem é muito mais do que a transmissão de verdades parciais; por isso, num tempo marcado pela fragmentação dos saberes, na caracterização do professor há referência à interdisciplinaridade, bem como a um código para interpretar correctamente o seu sentido. Assim, tal «interdisciplinaridade» não pode ser levada à prática unicamente a partir de conceitos analíticos ou dispersos do saber; só poderá nascer de uma reflexão e síntese pessoal, que abranja as diferentes ciências à luz de uma verdade que lhe confira unidade e sentido. Consequentemente, qualquer professor universitário deve ter algo de filósofo; pois é nessa filosofia da própria disciplina que se pode encontrar os pontos últimos de ligação aos restantes saberes.
Intercâmbio intelectual entre professores e alunos
De qualquer modo, as palavras de Bento XVI constituem um desafio para os próprios professores, que, para estarem à altura da sua missão, devem ter em conta, por um lado, que o caminho para a verdade nos empenha totalmente e, por outro, que a própria verdade está sempre muito além do nosso alcance e que nunca a possuímos integralmente, pois é, pelo contrário, ela que nos possui, como notamos no facto da mesma consumir o melhor das nossas energias.
Entretanto, para que esta subordinação lógica à verdade, sem a qual não existe uma verdadeira vocação universitária, seja posta em prática de modo efectivo, torna-se imprescindível cultivar uma atitude humilde em que o professor se coloca em segundo plano transformando-se numa via para o caminho de outros rumo à verdade.
Esses «outros», não são nunca, pura e simplesmente, os destinatários de processos docentes de ensino/aprendizagem, mas pessoas cujos anseios mais profundos de verdade que vão muito para além da simples assimilação de saberes materiais não temos o direito de defraudar. Por isso, a relação académica, tanto entre colegas professores como entre professores e estudantes hão-de ser estabelecidas num clima de intercâmbio intelectual que tenha em conta o todo da pessoa.
Esses «outros», não são nunca, pura e simplesmente, os destinatários de processos docentes de ensino/aprendizagem, mas pessoas cujos anseios mais profundos de verdade que vão muito para além da simples assimilação de saberes materiais não temos o direito de defraudar. Por isso, a relação académica, tanto entre colegas professores como entre professores e estudantes hão-de ser estabelecidas num clima de intercâmbio intelectual que tenha em conta o todo da pessoa.
Este estilo de ser professor, que tem em Cristo a sua primeira referência, facilita, sem dúvida, a tarefa de «propor e prestigiar a fé perante a inteligência dos homens». Pois constitui o ambiente dentro do qual pode desenvolver-se essa harmonia entre fé e razão da qual brotaram, no Ocidente, tantos frutos culturais vividos em todo o mundo, entre os quais, significativamente, a própria instituição.
Ana Marta González
Ana Marta González é professora de Filosofia Moral na Universidade de Navarra e directora do projecto "Cultura emocional e identidade"
Aceprensa
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