Desde há séculos, os cristãos repararam que o Anjo se dirigiu a Nossa Senhora de uma maneira invulgar, que marcou profundamente a história da Igreja e se reflecte nas decisões recentes do Papa Francisco.
Salvo na iminência de ser morto na Cruz, parece que Jesus não apreciava que O tratassem como rei, pelos equívocos que esse título gerava. Por exemplo, quando O quiseram fazer rei (Jo 6, 15) foge para o monte.
Em contrapartida, quando o Anjo fala com Nossa Senhora, o eixo da mensagem é que ela vai ser Mãe do Rei, vai conceber um filho «a quem o Senhor Deus dará o trono de seu pai David, reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá sem fim» (Lc 1, 32-33).
Zacarias insiste: «suscitou uma força de salvação na casa do seu servo David» (Lc 1, 69), isto é, na casa real com quem Deus tinha estabelecido a Aliança.
O Imperador César Augusto (um pagão incapaz de medir o alcance extraordinário da sua acção) mandou que cada família fosse recensear-se à cidade de origem do marido e foi isso que obrigou José a ir com a sua mulher, que estava para dar à luz, «à cidade de David, chamada Belém, por ser da casa e da linhagem de David» (Lc 2, 4). Não apenas S. José era de estirpe real como o Evangelista sublinha que isso foi decisivo para que Jesus nascesse onde devia nascer.
Quando Jesus nasce, o que o Anjo tem para dizer aos pastores é «hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor!».
Os apóstolos e aqueles cristãos que conheciam as tradições de Israel compreenderam imediatamente o que Deus propôs a Nossa Senhora. Na monarquia de Israel, o Rei e a Mãe do Rei reinavam juntamente, iniciavam juntos essas funções, sentavam-se lado a lado no trono e o Rei tomava as decisões de acordo com a sua Mãe. Neste sistema, a mulher do Rei não tinha particular relevância, só quando o marido morria e o filho lhe sucedia é que ela assumia a importantíssima função de Mãe do Rei. Os livros históricos do Antigo Testamento, os Livros das Crónicas, os Livros dos Reis, etc., estão cheios de exemplos do papel essencial exercido pela Mãe do Rei.
Ou seja, conhecendo o mundo israelita e a história da casa de David, é óbvio que Deus chamou Nossa Senhora a reinar unida ao seu Filho como Rainha da Misericórdia, porque na casa de David era essa a função da Mãe do Rei, a de acrescentar à autoridade real a suavidade da misericórdia.
O Papa Francisco, através de uma carta do Prefeito para o Culto Divino, publicada há dias, na Memória do Coração Imaculado de Maria, dispôs que se acrescentasse a invocação «Mater misericordiae» (Mãe da Misericórida) na Ladainha que se costuma rezar no final do Terço, a seguir à invocação «Mãe da Igreja».
Comemoram-se este ano os 20 anos da canonização de Santa Faustina Kowalska, a freira polaca a quem Deus pediu que promovesse no mundo a devoção à Divina Misericórdia, e comemoram-se os 40 anos da Encíclica «Dives in misericordia» ([Deus] Rico em miseridórida), de João Paulo II. Esta Encíclica é um vibrante apelo a redescobrir a ânsia divina de misericórdia para connosco, que o Papa classifica como ponto central –hoje mais do que nunca– para o futuro da Igreja e da humanidade.
Para Bento XVI «a misericórdia é realmente o núcleo central da mensagem evangélica, é o próprio nome de Deus, o rosto com o qual Ele Se revelou na Antiga Aliança e Se revelou plenamente em Jesus Cristo, incarnação do Amor criador e redentor» (Regina Caeli, 30 de Março de 2008).
O Papa Francisco deu um relevo ainda maior à mensagem de Santa Faustina Kowalska, que é afinal a mensagem de Cristo, porque este nosso tempo, diz o Papa, é especialmente o tempo da misericórdia (Carta apostólica «Misericordia et misera», 2016). No Santuário «Mater Misericordiae», em Vilnius, na Lituânia, lançou ao mundo o desafio: «a Mãe de Misericórdia convida-nos a abrir as portas a um amanhecer novo» (2018). Deus espera por nós no sacramento da Confissão para nos perdoar –diz também o Papa– e quer-nos cada vez mais próximos de Nossa Senhora, «Mãe de Misericórdia».
José Maria C.S. André