Na triste discussão em que nos envolvemos sobre a eutanásia não tenho ouvido (talvez por falta de atenção) uma consideração que me parece elementar: nós não somos nossos. Somos nossos no sentido de que temos o dever e o direito de orientar a nossa vida segundo o que nos parece melhor para nós e para os outros, pois somos devedores àqueles que nos criaram, nos educaram, nos forneceram inúmeros meios de subsistência, de cultura, de segurança, de amparo nas penas, de congratulação nas alegrias, de saúde, etc. Para não falar de Deus, que nos deu a existência e tudo, e muito mais, do que antes dissemos. Mas deixemos o que não se quer ouvir e reparemos, pelo menos, que não «pertencemos» só a nós. Pertencemos a todos, porque, sem eles, não seríamos nós. Não seríamos, pura e simplesmente. É uma questão de justiça elementar.
E o maior bem que fazemos é sermos e desenvolver-nos - «realizar-nos», diz-se – o melhor que pudermos, pois cada um é, para os outros, uma riqueza: não há ninguém como ele. Somos todos diferentes. Ninguém perfeito, mas cada um dotado de qualidades, memórias, capacidades, gostos, pontos de vista, modos de ser, que nos enriquecem ou proporcionam experiências, conhecimentos e ocasiões de serviço, de compreensão, de maturação, sem as quais não nos desenvolveríamos nós. Incluindo os mais doentes e incapacitados, que são um centro de aflições, mas também da maior generosidade e maiores afeições. Sem compaixão, não seríamos humanos.
Equiparar o direito à vida ao direito à morte é equiparar dois contrários. Tenho direitos porque tenho deveres. O imperativo é o dever; não o direito, a que por vezes posso renunciar; ao dever, nunca. O direito à vida nasce do dever de viver, enquanto não chega a morte. Enquanto vivo, tudo o que faça de bem é pouco para o que devo aos pais, à família, aos amigos, à sociedade, ao mundo. A Deus, nem se diga. Para ter direito à morte seria preciso pedir licença a todos os que nos amam, a todos os que nos servem, a todos, afinal. A Deus, nem se diga.
O direito a morrer «docemente» (na medida do possível) corresponde apenas ao dever de procurar manter a consciência até ao fim desta etapa terrena. Aliás, o que os médicos (propriamente ditos) sempre tiveram o cuidado de fazer. O «direito à morte» só se pode entender nesse sentido: o de enfrentar essa hora decisiva com a maior tranquilidade possível. O direito a não alongar umas horas da nossa existência à custa de sofrimentos supérfluos, acrescentados aos da agonia.
Hugo de Azevedo