De facto, aparte a magistral descrição da parábola proferida por Jesus Cristo, a beleza do texto, a economia das palavras, o ritmo da descrição – características deste Evangelista – põem-nos perante um autêntico quadro ou, melhor, perante um filme que se desenrola aos nossos olhos prendendo-nos a atenção e excitando os nossos sentidos.
São Josemaria recomendou: aconselho-te a que, na tua oração, intervenhas nas passagens do Evangelho, como um personagem mais. [i]
É isso mesmo que desejo fazer.
Desde logo vou tentar personificar um personagem da parábola:
O Estalajadeiro.
Talvez possa parecer estranho ter escolhido este “papel” que, obviamente, parece não ser “central” na parábola.
Mas, eu, que nada sei nem de parábolas nem de personagens, muito menos me sinto capaz de lhes atribuir mérito ou demérito, o grau de importância que possam ter, apaixono-me por este.
Imagino-me à porta do meu estabelecimento onde recebo hóspedes, normalmente viajantes que percorrem os caminhos poeirentos e agrestes da Palestina e que procuram um lugar onde tomar uma refeição, descansar um pouco ou passar a noite com um mínimo de conforto.
Estando ali, no meu posto de trabalho, deparo-me com uma cena estranha:
Um homem que se aproxima a pé, conduzindo a sua cavalgadura pela arreata e, mal se mantendo direito em cima desta, um outro homem com os vestidos em farrapos, cheio de feridas vendadas com panos embebidos em azeite e vinho num estado lastimoso.
Apresso-me a ir ao seu encontro e tenho logo uma primeira reacção de enorme dúvida: quem conduz o ferido é um Samaritano!
O que faz um Samaritano dirigir-se ao meu estabelecimento?
Sim, eu, que sou judeu, não “morro de amores” pelos samaritanos que, aliás, me pagam na mesma moeda.
Um antagonismo ancestral – que ninguém sabe exactamente quando começou e porquê – divide os filhos de Israel: Samaritanos e Judeus.
Mas, surpreendentemente, o Samaritano aproxima-se de mim e diz-me:
‘Encontrei este teu irmão estendido na vera do caminho porque caiu nas mãos dos ladrões, que o despojaram, o espancaram e retiraram-se, deixando-o meio morto [ii]. Tentei prestar-lhe o auxílio possível ligando-lhe as feridas, deitando nelas azeite e vinho, mas não podia deixá-lo ali naquele estado por isso pu-lo sobre o meu jumento e trouxe-o até esta estalagem para melhor cuidar dele. [iii] Ajuda-me a levá-lo para dentro e encontra uma acomodação confortável onde o possamos fazer’.
Fiquei atónito, sem palavras e levei algum tempo a reagir.
Como que por encanto desvaneceram-se as minhas dúvidas e pruridos e ajudei a transportar o ferido para a melhor habitação de que dispunha.
Deitámos o homem numa cama, despimos-lhe os farrapos, arranjei uma túnica lavada que lhe vestimos e, enquanto o Samaritano observava de novo as feridas renovando as ligaduras e unguentos fui à cozinha buscar um caldo de sopa que a custo conseguiu engolir.
Tendo caído num sono profundo, deixámo-lo a descansar e retiramo-nos; o samaritano para uma acomodação na parte superior da casa, eu para o meu posto à entrada da estalagem.
A noite ia adiantada e como não era de prever aparecessem novos hóspedes, também fui deitar-me.
Mas não conseguia conciliar o sono pensando em tudo quanto acontecera e algo apreensivo quanto ao dia seguinte.
Logo pela manhã o samaritano preparou-se para seguir viagem mas, antes que eu pudesse perguntar o que fosse, abriu a sua bolsa, tirou dois denários, e deu-mos dizendo: Cuida dele; quanto gastares a mais, eu to pagarei quando voltar. [iv]
Ainda hoje, passado tanto tempo, me admiro com a minha atitude!
Nem por um momento me ocorreu que o Samaritano não faria exactamente como me disse e que não ficaria por receber o que viesse a gastar com o pobre coitado agora a meu cargo.
Sim, eu que sou judeu e tenho um negócio, não posso dar-me ao luxo de receber hóspedes sem ter a certeza que serei ressarcido das despesas de estadia tanto mais que estas seriam bastante fora do “normal”: os tratamentos, ligaduras, unguentos e outros cuidados que seriam necessários.
Volto a repetir: Ainda hoje, passado tanto tempo, me admiro com a minha atitude!
Pela noitinha o doente estava visivelmente melhor e começou por perguntar-me como tinha ido ali parar, o que acontecera…
Contei-lhe tudo, claro, e o seu espanto foi tão grande como tinha sido o meu no dia anterior quando o estranho “cortejo” aparecera à minha porta.
Não se lembrava de nada, tão súbita e violenta tinha sido a acção dos salteadores, nem sequer quanto tempo estivera prostrado por terra.
Mas achava estranho que ninguém o tivesse visto naquela situação, já que o caminho onde tudo acontecera era muito concorrido.
Eu também – pensando melhor – achei estranho, mas como estou habituado à indiferença das pessoas perante as necessidades dos outros não me custava acreditar que alguns o terão visto e ao dar-se conta da situação tivessem optado por seguir adiante livrando-se de “trabalhos” e incómodos.
De facto há tanta gente que vai pelos caminhos da vida tão cheios de si próprios, absorvidos com os seus assuntos que olhando não vêm e, se acaso vêm, ficam indiferentes ao que, pensam, não lhes diz respeito.
Tomei uma decisão:
A partir de agora a porta da minha estalagem estará sempre aberta a quem tiver necessidade de entrar, não a fecharei a ninguém por motivos de raça, cor da pele ou religião e independentemente de possuírem meios ou recursos para cobrir as despesas que porventura façam.
Esta decisão consola-me muito porque penso que, um dia, pode acontecer-me o mesmo que ao pobre homem assaltado e espancado pelo salteadores e, então precisarei de alguém – um Samaritano… talvez – que se condoa de mim e me preste assistência.
(ama, comentário sobre Lc 10 25-37 2016.01.26)