A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 29-08-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De caráter forte e determinado, Pio XI, o Papa dos Pactos Lateranenses, das corajosas encíclicas contra o fascismo (Não precisamos), o nazismo (Mit Brennender sorge) e o comunismo ateu (Divini Redemptoris), impôs-se desde as primeiras horas que se seguiram à sua ascensão ao Sólio pontifício. Quis que sua antiga doméstica de Brianza, Teodolida Banfi, ao seu serviço há muito tempo, permanecesse como governanta do apartamento pontifício. Foi-lhe explicado que não era conveniente que uma mulher desempenhasse esse serviço, já que não havia nenhum precedente a esse respeito. “Todo precedente teve um início”, respondeu o Papa. “Isso não pode nos impedir, portanto, de criar um precedente”.
Pio XI raramente perdia a paciência, mas, quando isso acontecia, todos se lembravam disso por um bom tempo. Como aquela vez em que não se conseguia encontrar um determinado documento nos arquivos do Santo Ofício, e o Papa Ratti convocou um de seus colaboradores, dizendo: “Ou esse papel aparece, ou todos os dirigentes da Suprema Congregação desaparecem”. O documento foi encontrado em menos de uma hora.
Outra vez, o pontífice não havia hesitado em retirar o chapéu cardinalício de um purpurado. Ocorreu em 1926, com o cardeal jesuíta Ludovico Billot, um dos membros mais influentes do Santo Ofício, colaborador na elaboração da encíclica anti-modernista Pascendi de Pio X (1907). Havia sido justamente Billot, como substituto do cardeal protodiácono, que estava doente nesses dias, que colocou sobre a cabeça de Ratti a tiara papal durante a faustosa cerimónia da coroação.
Em 1926, Pio XI havia condenado a Action Française, o movimento do agnóstico Charles Maurras, que “se servia da Igreja sem servi-la” e que havia assumido “um agressivo e provocador espírito nacionalista que gerava acusações e calúnias ao Papa”. Pio XI não aceitava que a fé católica fosse instrumentalizada para um projeto político, e vice-versa.
O cardeal Billot, no entanto, considerava aquela formação política francesa como um baluarte contra o liberalismo e, depois da condenação pontifícia, havia manifestado a sua solidariedade pessoal a Maurras com um bilhete, que foi publicado por um jornal, levantando a ira de Ratti. Convocado para uma audiência em setembro de 1927, Billot entrou como cardeal e saiu como simples padre jesuíta. No seguinte dia 9 de dezembro, durante o Consistório, o Papa Pio XI explicou assim esse clamoroso gesto ao Sacro Colégio: “A sua ilustríssima ordem sofreu uma grave perda, quando o eminentíssimo Ludovico Billot renunciou à sagrada púrpura, voltando a ser um simples religioso da gloriosa e benemérita Companhia de Jesus. Quando ele nos escreveu de sua própria mão para que lhe concedêssemos a renúncia da excelsa dignidade, pareceu-nos que os motivos de renúncia apresentados eram generosos e espirituais, propostos, além disso, em graves circunstâncias. Assim, considerada a questão longamente, consideramos compatível com o nosso ofício ratificar a renúncia”. Na realidade, parece que a escolha do purpurado não foi tão espontânea…
Mas a audiência mais tempestuosa das concedidas por Pio XI foi a do arcebispo de Viena, o cardeal Theodor Innitzer. Este, no dia 15 de março de 1938, três dias depois do Anschluss (anexação) da Áustria à Alemanha, tinha recebido Adolf Hitler calorosamente e havia publicado uma carta que convidava todos os austríacos a se pronunciar pelo “nosso retorno glorioso ao Grande Reich” e terminava com as palavras “Heil Hitler”. O Papa e o seu secretário de Estado, Eugenio Pacelli, convocaram o cardeal ao Vaticano, onde ele foi obrigado a assinar uma retratação já escrita, na qual declarava que os bispos estão subordinados às diretrizes da Santa Sé e que os fiéis austríacos não devem se sentir vinculados em suas consciências ao acolhimento favorável que a hierarquia eclesiástica havia reservado ao Führer de Berlim.
Depois de ter posto a sua assinatura no documento, Innitzer foi recebido pelo Papa Ratti: quem estava na ante sala havia referido que foi possível ouvir nitidamente os gritos e a concitação. O cardeal austríaco retornaria a Viena com o rabo entre as pernas, mesmo que a sua retirada pública não mudaria o resultado da votação: 99,08% dos seus concidadãos dariam o seu próprio consentimento à “reunificação da Áustria com o Grande Reich“.
Conta-se que, um dia, o papa perguntou a um prelado o que se dizia dele na Cúria Romana. Este respondeu: “Diz-se que Vossa Santidade é um bom pontífice, mas de pulso muito firme”. Na verdade, os membros da Cúria estavam acostumados a defini-lo com as palavras do Dies Irae: “Rex tremendae majestatis”. Ratti respondeu: “O Papa não deve ser uma pessoa pusilânime, já que, como dizia o duque de La Rochefocauld, ‘a fraqueza se contrapõe mais à virtude do que ao vício’”.
Quando Hitler visitou Roma, acolhido triunfalmente por Benito Mussolini, Pio XI deu ordens de que nenhuma bandeira fosse exposta nas sacadas dos palácios da Santa Sé, abandonou a capital, retirando-se para Castelgandolfo, e fez escrever no L’Osservatore Romano que o ar do Castelo lhe fazia bem, enquanto o de Roma lhe fazia mal.
O Papa Ratti desdenhava qualquer forma de nepotismo, jamais concedeu audiências especiais a parentes e, quando um sobrinho seu, engenheiro, executou alguns trabalhos no Vaticano, Pio XI deixou por escrito que ele não seria retribuído. Também era alérgico aos bajuladores. Papa de grandes impulsos missionários, sob o seu pontificado foram concluídas 18 concordatas com vários Estados, a fim de garantir a maior liberdade possível para a Igreja. No dia 13 de maio de 1929, ele disse: “Quando se tratar de salvar alguma alma, sentiremos a coragem de tratar com o diabo em pessoa”.
O seu caráter forte não lhe impedia de se comover, como testemunham as expressões em favor dos judeus pronunciadas no dia 6 de setembro de 1938, quando recebeu de presente um antigo missal de um grupo de peregrinos belgas. Abrindo a página em estava impressa a segunda oração depois da elevação da hóstia consagrada, o Papa Ratti leu em voz alta a passagem em que se suplicava que Deus aceitasse a oferta do altar com a mesma benevolência com que havia aceito uma vez o sacrifício de Abraão. “Todas as vezes que eu leio as palavras ‘o sacrifício de Abraão’ – disse –, não posso evitar de me comover profundamente. Notem bem: nós chamamos Abraão de nosso patriarca, o nosso antepassado. O anti-semitismo é inconciliável com esse elevado pensamento, com a nobre realidade expressa por essa oração… Espiritualmente, somos todos semitas”.
(Fonte: ‘Fratres in Unum’ com edição de JPR)