Antecipando-se a alguns pseudo-historiadores, que acusaram a Igreja católica de cumplicidade, por via do silêncio, com o regime nazi, Pio XI refutou essa calúnia.
Passou quase desapercebido o 80º aniversário da encíclica “Mit brennender Sorge”, de 14 de Março de 1937. Não obstante o tempo já decorrido, vale a pena evocar aquela corajosa declaração da Igreja católica contra o nacional-socialismo, que foi também a primeira condenação pública, por um chefe de Estado europeu, do nazismo.
A hostilidade do regime nazi para com a Igreja católica foi, desde o início, patente: o então Cardeal Secretário de Estado, Eugénio Pacelli, que depois seria o Papa Pio XII – sobre a sua acção em defesa dos judeus, leia-se “Os Judeus do Papa”, de Thomas Gordon – chegou a fazer, sem efeito, mais de 50 protestos formais ao embaixador alemão na Santa Sé, von Bergen.
Ante a inoperância das intervenções diplomáticas da Santa Sé, o Papa Pio XI, já de muita idade e doente, decidiu denunciar publicamente o nacional-socialismo germânico. Para este efeito, pediu ao então bispo de Munique, Cardeal Michael Faulhaber, que redigisse um primeiro esboço da encíclica. Curiosamente, foi ao futuro Pio XII que se ficou a dever o seu título: “Com ardente (brennender) preocupação …”, em vez de “Com grande (grosser) preocupação …”, como o prelado de Munique propusera. Que a versão oficial deste documento seja em alemão, quando é da praxe que as encíclicas sejam redigidas em latim, é significativo de que o seu destinatário era, obviamente, o povo germânico e, sobretudo, o seu regime nacional-socialista.
“Mit brennender Sorge” critica vários princípios da ideologia nazi como, por exemplo, o exacerbado nacionalismo, a divinização do führer, o paganismo pangermânico e a exaltação da raça ariana, em detrimento de outros povos, nomeadamente os judeus, eslavos e ciganos. “Só espíritos superficiais – diz a encíclica – podem incorrer no erro de falar de um Deus nacional e de uma religião nacional, na tentativa de limitar Deus, criador do mundo, rei e legislador de todos os povos, às fronteiras de um só povo e da exiguidade étnica de uma única raça”. Como é óbvio, esta censura ao nacionalismo nazi é já uma implícita condenação do seu antissemitismo.
Outro tema, em que esta encíclica é particularmente incisiva, respeita ao carácter inalienável e universal dos direitos humanos. O regime nazi, como todos os totalitarismos, subordinava esses direitos aos interesses dos governantes, nomeadamente em questões educativas. Como escreveu Pio XI, “as leis e outras disposições semelhantes que não tenham em conta a vontade dos pais nas questões escolares, ou a contradigam pelo recurso à violência ou a ameaças, estão em contradição com o direito natural e são intrínseca e essencialmente imorais”.
Antecipando-se ao juízo de alguns pseudo-historiadores que, por ignorância ou má-fé, acusaram a Igreja católica de cumplicidade com o regime nazi, por omissão ou pelo seu alegado silêncio, Pio XI refuta essa calúnia, sem negar que houve, da sua parte, uma atitude de prudente contenção: “Pesámos cada palavra desta encíclica na balança da verdade e, ao mesmo tempo, na do amor. Não queríamos que, por um inoportuno silêncio, viéssemos a ser culpados por não ter esclarecido a situação, nem quisemos endurecer, com um rigor excessivo, o coração daqueles que, tendo sido confiados à nossa responsabilidade pastoral, não nos são menos amados pelo facto de agora se terem afastado da Igreja e andarem pelas sendas do erro”. Só nesse mesmo ano de 1937, cento e oito mil fiéis católicos abandonaram a Igreja, por terem aderido ao nazismo; por este motivo, Pio XI, sem deixar de condenar energicamente o nacional-socialismo, quis evitar mais deserções, facilitando o regresso dos apóstatas extraviados.
Como reagiu a Igreja católica alemã a esta iniciativa conjunta do Papa Pio XI e do seu imediato sucessor, Pio XII? Em carta então enviada ao Cardeal Adolf Bertram, presidente da Conferência Episcopal de Fulda, o Cardeal de Münster, Clemens August von Galen, que foi beatificado em 2005, disse: “A encíclica papal foi recebida com alegria e gratidão pelos católicos. As palavras do Santo Padre, carinhosas e sérias mas também claras, tiveram um efeito libertador. Corroboraram o que já sabíamos, mas que desejávamos ver confirmado: a Igreja não só não prescinde em nada da sua doutrina, como está longe de se calar, por tática, frente aos ataques contra a fé provocados pelos poderes de facto. O Santo Padre afirmou, frente à opinião pública mundial e, em particular, a todo o povo alemão, que no nosso país se persegue a liberdade religiosa. (…) Este apelo (…) ultrapassou o âmbito dos ‘filhos fiéis da Igreja’, pois muitos cristãos não católicos se sentiram também interpelados. Temos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para reforçar esta frente cristã. Por este motivo, o episcopado alemão deve quebrar, unânime e publicamente, o ‘muro de silêncio’ que se opõe à palavra do Papa”.
“Com esta tão invulgar atitude – escreveu ainda von Galen – o Santo Padre deu-nos uma ajuda extraordinária. Reforçou a unidade e ampliou a frente dos defensores do Cristianismo. Parece que também os nossos adversários ficaram impressionados e, por isso, de momento só reagiram com um ‘muro de silêncio’ mas, nos bastidores, já estão a preparar um contragolpe. Devemos esperar de braços cruzados a sua reacção, sem fazer nada?! O Santo Padre deve saber que não desaproveitaremos a oportunidade que nos deu para defendermos e difundirmos a verdade cristã”.
Como era de supor, as represálias nazis não se fizeram esperar: doze gráficas, onde tinham sido impressos os exemplares da encíclica, foram expropriadas; escolas, faculdades e institutos superiores de teologia foram compulsivamente encerrados, bem como vários conventos. Em Coblenza, 170 franciscanos foram detidos e condenados.
A encíclica “Mit brennender Sorge” foi clandestinamente impressa e distribuída pelas 11.500 paróquias católicas alemãs, sendo lida nas missas do dia 21 de Março de 1937, domingo de Ramos. Começava então, liturgicamente, a semana santa da paixão e morte de Jesus Cristo. Também para os católicos, alemães e não só, se iniciava a etapa final desta sua dolorosa via-sacra, iniciada com a ascensão de Hitler ao poder. Graças à fidelidade da Igreja católica à verdade, na defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana, cumpriu-se, mais uma vez, o vaticínio do apóstolo: “esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé” (1Jo 5,4).
Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada in Observador 07.10.2017
(seleção de imagens 'Spe Deus')