Na quarta-feira passada, começamos o tempo litúrgico da Quaresma; nele, a Igreja convida-nos a preparar-nos para a celebração da grande festa da Páscoa. É um tempo especial para lembrar o dom do nosso Baptismo, quando fomos feitos filhos de Deus. A Igreja convida-nos a reavivar o dom recebido para não o deixar cair no esquecimento como algo passado ou guardado numa «caixa de recordações». Este tempo de Quaresma é uma boa ocasião para recuperar a alegria e a esperança que nos vem do facto de nos sentirmos filhos amados do Pai. Este Pai que nos espera para livrar-nos das vestes do cansaço, da apatia, da desconfiança e revestir-nos com a dignidade que só um verdadeiro pai e uma verdadeira mãe sabem dar aos seus filhos, as vestes que nascem da ternura e do amor.
O nosso Pai é pai duma grande família: é Pai nosso. Sabe ter um amor, mas não gerar e criar «filhos únicos». É um Deus que Se entende de família, de fraternidade, de pão partido e partilhado. É o Deus do «Pai Nosso», não do «pai meu e padrinho vosso».
Em cada um de nós, está inscrito, vive aquele sonho de Deus que voltamos a celebrar em cada Páscoa, em cada Eucaristia: somos filhos de Deus. Um sonho vivido por muitos irmãos nossos no decurso da história. Um sonho testemunhado pelo sangue de tantos mártires de ontem e de hoje.
Quaresma: tempo de conversão, porque experimentamos na vida de todos os dias como tal sonho se encontra continuamente ameaçado pelo pai da mentira, por aquele que quer separar-nos, gerando uma sociedade dividida e conflituosa, uma sociedade de poucos e para poucos. Quantas vezes experimentamos na nossa própria carne ou na carne da nossa família, na dos nossos amigos ou vizinhos a amargura que nasce de não sentir reconhecida esta dignidade que todos trazemos dentro. Quantas vezes tivemos de chorar e arrepender-nos, porque nos demos conta de não ter reconhecido tal dignidade nos outros. Quantas vezes – digo-o com tristeza – permanecemos cegos e insensíveis perante a falta de reconhecimento da dignidade própria e alheia.
Quaresma: tempo para regular os sentidos, abrir os olhos para tantas injustiças que atentam directamente contra o sonho e o projecto de Deus. Tempo para desmascarar aquelas três grandes formas de tentação que rompem, fazem em pedaços a imagem que Deus quis plasmar.
Três tentações de Cristo... Três tentações do cristão que procuram arruinar a verdade a que fomos chamados. Três tentações que visam degradar e degradar-nos.
1. A riqueza, apropriando-nos de bens que foram dados para todos, usando-os só para mim ou para «os meus». É conseguir o pão com o suor alheio ou até com a vida alheia. Tal riqueza é pão que sabe a tristeza, amargura e sofrimento. Numa família ou numa sociedade corrupta, é o pão que se dá a comer aos próprios filhos.
2. A vaidade: a busca de prestígio baseada na desqualificação contínua e constante daqueles que «não são ninguém». A busca exacerbada daqueles cinco minutos de fama que não perdoa a «fama» dos outros. E, «alegrando-se com a desgraça alheia», abre-se caminho à terceira tentação: o orgulho.
3. O orgulho, ou seja, colocar-se num plano de superioridade de qualquer tipo, sentindo que não se partilha «a vida comum dos mortais» e rezando todos os dias: «Obrigado, Senhor, porque não me fizestes como eles».
Três tentações de Cristo... Três tentações que o cristão enfrenta diariamente. Três tentações que procuram degradar, destruir e tirar a alegria e o frescor do Evangelho; que nos fecham num círculo de destruição e pecado.
Por isso vale a pena perguntarmo-nos: Até que ponto estamos conscientes destas tentações na nossa vida, em nós mesmos? Até que ponto nos acostumamos a um estilo de vida que considera a riqueza, a vaidade e o orgulho como a fonte e a força de vida? Até que ponto estamos convencidos de que cuidar do outro, preocupar-nos e ocupar-nos com o pão, o bom nome e a dignidade dos outros seja fonte de alegria e de esperança?
Escolhemos, não o diabo, mas Jesus; queremos seguir os seus passos, mas sabemos que não é fácil. Sabemos o que significa ser seduzidos pelo dinheiro, a fama e o poder. Por isso, a Igreja oferece-nos este tempo da Quaresma, convida-nos à conversão com uma única certeza: Ele está à nossa espera e quer curar o nosso coração de tudo aquilo que o degrada, degradando-se ou degradando. É o Deus que tem um nome: misericórdia. O seu nome é a nossa riqueza, o seu nome é a nossa fama, o seu nome é o nosso poder. E é no seu nome que repomos a nossa confiança, como diz o Salmo: «Vós sois o meu Deus, em Vós confio». Podemos repetir isto juntos: «Vós sois o meu Deus, em Vós confio».
Que, nesta Eucaristia, o Espírito Santo renove em nós a certeza de que o seu nome é misericórdia e nos faça experimentar, em cada dia, que «o Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus», sabendo que com Ele e n’Ele «renasce sem cessar a alegria» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 1).