Na sua primeira encíclica (Lumen Fidei), Francisco I seguiu a herança central do seu antecessor, isto é, atacou de frente a arrogância do racionalismo que julga possuir a capacidade de autonomizar o homem em relação a qualquer ética transcendente, em relação a qualquer exigência exterior ao "eu" moderninho e pós-moderninho. Numa atmosfera cultural saturada de imanência (decretos legais e sentenças científicas chovem todos os dias), Francisco I escreveu aquilo que tinha de escrever enquanto líder da Igreja: existe uma transcendência acima do aqui e agora, acima das leis, acima da ciência. Sim, transcendência. Sim, Deus. Se tiverem problemas com a palavra Deus, usem a expressão Direito Natural para disfarçar o incómodo . O Direito Natural é a pastilha Rennie da teologia.
O pensamento clássico presente nesta encíclica não é um comunicado interno para os claustros. É uma interpelação para o exterior, para a Cidade. É, aliás, uma aula de história e de filosofia. Explico porquê. Na esfera moral, um racionalismo sem qualquer noção de transcendência acaba por fazer coisas imorais ; deixada sozinha no galinheiro, a ciência pode cair num poço sem fundo, basta pensar na fronteira da genética . Na esfera política, uma razão meramente mecânica aceita de forma acrítica aquilo que existe, revelando a incapacidade positivista para desafiar a realidade. Exemplos? Positivistas do início do século XX diziam que a legitimidade de um regime não depende da sua moral mas da sua sobrevivência. Se sobreviver durante muito tempo, fica provado que regime x é legítimo. A Coreia do Norte é, portanto, legitíma. Bonito, ah? E deveras científico. Mais exemplos? O direito português é insuportavelmente positivista. Foi, é e continuará a ser uma escolinha de gestão jurídica daquilo que existe. Pior: o comentário político que nasceu nesta tradição de direito, o comentário à Marcelo, é uma mera gestão do status quo, sem qualquer proposta de mudança normativa . Esta é a parte da filosofia. Falta a parte da história.
Num dos momentos mais pertinentes da encíclica, o Papa argentino recorda o choque entre São Paulo e os fariseus, "a discussão sobre a salvação pela fé ou pelas obras da lei". São Paulo rejeitava a "atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras". Na esteira de Paulo, Francisco I afirma que "quem actua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça" acaba mal. Neste sentido, os fariseus são a metáfora perfeita da modernidade assanhada que quis substituir a fé pela fé na razão, que quis substituir o Direito Natural pela endeusamento do direito positivo. Qual foi o erro desta modernidade cafeinada? Ao rejeitar a transcendência do Direito Natural, assumiu-se que o direito só podia ser positivo, assumiu-se que a noção de justiça só podia ser determinada pela vontade política. Um erro evidente: os homens falam recorrentemente em "leis injustas" e este julgamento parte sempre - explícita ou implicitamente - de um padrão de justiça que não depende da atmosfera do momento, dos políticos ou sequer da legislação do momento. O direito positivo não é sinónimo de bem ou verdade. Eis, portanto, a lição de história: a modernidade matou milhões através do comunismo e fascismo, as vanguardas modernas, porque libertou os políticos de qualquer travão moral, porque libertou a política de qualquer transcendência independente da imanência humana, porque destruiu o padrão de justiça universal que impõe os direitos inalienáveis do indivíduo, os direitos que não dependem da vontade do poder político. Este padrão universal pode ser apelidado de Direito Natural, sim senhor, mas isso é só uma forma de evitar a palavra proibida: Deus.
Henrique Raposo in Expresso