O que fica?" Quais as coisas que permanecem na vida? Que valores se mantêm quando tudo o resto falha? Nesta pausa de Verão é conveniente aproveitar as férias para meditar sobre esta grande questão da existência. E encontramos uma boa resposta numa das despedidas mais marcantes do nosso tempo. Para compreender a importância desse momento é preciso recuar um pouco.
O professor Joseph Ratzinger tinha planeado uma vida pacata de académico e estudioso, projecto frustrado por dois papas. Primeiro Paulo VI elevou-o ao episcopado em Maio de 1977 e ao cardinalato menos de um mês depois. Em seguida João Paulo II levou-o para Roma em 1981, durante quase 24 anos. O seu mandato de "Grande Inquisidor" constitui o segundo mais longo de sempre, apenas ultrapassado pelo cardeal Francesco Barberini no século XVII e, devido à turbulência doutrinária pós-concíliar, o mais mais mediático de todos os tempos. Todo o mundo, que ignora a burocracia vaticana, sabia bem o seu nome.
A 18 de Abril de 2005, dois dias depois de completar 78 anos, o cardeal fez as suas despedidas. O papa João Paulo morrera duas semanas antes, no dia 2, e estava a começar o conclave para eleger o sucessor. O novo papa certamente escolheria um novo prefeito e a sua espinhosa missão, tão diferente da que planeara, estava terminada. Ele, que repetidamente pedira a exoneração, voltaria aos seus estudos finais, até ser chamado à casa do Pai. A última intervenção pública daquele que foi o mais famoso e influente membro da Cúria Romana durante um quarto de século seria precisamente a homilia na missa inicial do conclave. Esse texto notável constitui o testamento espiritual do grande cardeal Ratzinger, um dos maiores teólogos da Igreja Católica. Em tom de balanço, afirma:
"Mas o que fica? O dinheiro não fica. Os edifícios tampouco ficam, nem os livros. Depois de um certo tempo, mais ou menos longo, tudo isto desaparece. A única coisa que permanece eternamente é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade. O fruto que fica, portanto, é o que semeamos nas almas humanas, o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor" (cardeal Ratzinger, homilia na missa na abertura do conclave, 18 de Abril de 2005).
Hoje, neste Verão, estamos também em tempo de balanço. O que ficou deste ano que passou? Que frutos esperamos do que aí vem? Sabemos bem que a nossa atenção tem estado ocupada com dinheiro, edifícios, livros. É para aí que converge o melhor dos nossos esforços e quase todas as nossas actividades. Os projectos profissionais, os objectivos imediatos, o horário de cada dia, tudo é concebido e executado para ganhar dinheiro, estabelecer edifícios, preencher livros. Chamamos a isso ser pragmático, eficiente, produtivo. Esse é o modelo que a nossa sociedade impõe. No final do ano, neste período do Verão, foi isso que ficou.
No entanto todos nós, sobretudo os mais velhos, vamos notando como depois de um certo tempo, mais ou menos longo, tudo isso desaparece. Se o nosso balanço for um pouco mais abrangente, basta que olhemos para lá do ano passado, e vemos logo como todos os esforços se esbateram.
A única coisa que permanece eternamente é precisamente aquilo que fomos esbanjando ao longo dos dias do ano que passou. Aquilo que omitimos, que esquecemos, que desprezámos, aquilo que sacrificámos ao dinheiro, edifícios e livros, é esse o único fruto que permanece eternamente. O amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma à alegria do Senhor. Aquilo que ficou na alma daqueles com quem passámos o nosso tempo, é isso que o tempo não leva. Por isso tantos neste Verão, apostando naquilo que não fica e sacrificando o que permanece, sentem-se vazios.
O ano novo começa daqui a dias. "Então, vamos e peçamos ao Senhor que nos ajude a levar fruto, um fruto que permaneça. Só assim a terra se transforma de vale de lágrimas em jardim de Deus" (idem). No dia seguinte a pronunciar estas palavras, o seu autor era Papa.
João César das Neves
(Fonte: DN online em 23.08.2010)