Passou quase um ano desde que o Santo Padre abriu a Porta Santa, em primeiro lugar no coração de África, e depois na Basílica de S. Pedro. Ao aproximar-se o final deste ano jubilar, que terminará na Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo, a 20 deste mês, recordamos os eventos que ocorreram em todo o mundo. Os mais importantes aconteceram, sem dúvida, na intimidade de cada pessoa com o Senhor. Só Deus sabe bem quantas pessoas voltaram a reconciliar-se com Ele, talvez depois de muitos anos de afastamento ou de tibieza.
Ao longo destes meses, nós procurámos redescobrir o mistério do Amor de Deus, que se esconde no seio da Igreja. Na verdade, a misericórdia divina enche toda a Terra, como as águas cobrem a imensa extensão dos oceanos. E revimo-la na Sagrada Escritura – nos profetas e nos Salmos, especialmente no Evangelho –, na liturgia, na piedade popular... Revimo-la também na nossa vida: basta um olhar para a própria existência e redescobrimos, maravilhados, a proximidade com que o Senhor nos tratou e nos trata, desde que nos fez entrar para a Igreja através do batismo, e mesmo antes.
Jesus Cristo transmite-nos um claro ensinamento no capítulo 15 do Evangelho de S. Lucas. Aí se recolhem três das Suas parábolas sobre a misericórdia divina: a da ovelha perdida, a da dracma que tinha desaparecido e a do filho pródigo. E S. Ambrósio comenta: «Quem é este pai, este pastor e esta mulher? Não representam eles Deus Pai, Cristo e a Igreja? Cristo leva-te aos Seus ombros, a Igreja procura-te e o Pai recebe-te. Um, porque é Pastor, nunca deixa de te sustentar. A outra, como Mãe, acolhe-te e procura-te continuamente. E então, o Pai veste-te de novo. O primeiro, pela Sua misericórdia. A segunda, cuidando de ti. E o terceiro, reconciliando-te com Ele» [1].
Estes meses têm-nos ajudado a revitalizar o nosso amor a Deus e aos outros precisamente nos pontos onde pudesse estar mais debilitado. Descobrimos talvez que são ainda muitos os recantos da alma em que esta virtude nos falta, e isso não nos deve estranhar, porque o chamamento a ser «misericordiosos como o Pai» é um convite para toda a vida.
O encerramento do Ano Santo não significa, portanto, um ponto de chegada para passar a outra coisa, mas sim um ponto de partida para caminhar com renovado entusiasmo pelo caminho do nosso progredir cristão. Desde o batismo, todos nós, os cristãos, possuímos o sacerdócio comum, que nos leva a praticar a misericórdia com um profundo sentido da filiação divina. S. Josemaria insistia: em qualquer homem se deve ver um irmão, a quem é devido um amor sincero e um serviço desinteressado [2]. É esta a mensagem do Papa, poucas semanas antes de terminar este ano de graças especiais. Não é suficiente ganhar experiência da misericórdia de Deus na própria vida, é necessário que quem a recebe seja também sinal e instrumento para os outros. Além disso, a misericórdia não está reservada apenas a momentos particulares, mas abrange toda a nossa experiência quotidiana [3].
Por isso me pergunto, e vos animo a interrogar-vos: o que ficou em nós do Ano santo? Embebemo-nos mais desta certeza de que Deus olha para nós como um Pai cheio de ternura, de amor infinito [4]? No convívio quotidiano, na vida familiar, no trabalho profissional, no apostolado, nas visitas aos pobres e na ajuda aos que sofrem, está mais presente o Amor de Deus, manifestado em Cristo? Mantemos bem viva a esperança de que, apesar dos nossos erros, o Senhor quer que atuemos como melhores transmissores da Sua misericórdia? É muito oportuno que, como a Virgem nossa Mãe, meditemos sobre estas coisas e as ponderemos no nosso coração.
Para avançar de forma cada vez mais decidida no caminho pelo qual o Espírito Santo impele a Igreja, atrevo-me a sugerir duas linhas de ação que, de certa maneira, resumem o caminho percorrido durante estes meses, e que podem ajudar-nos a manter acesa nas nossas almas a luz deste Ano santo: acolher-nos pessoalmente à misericórdia de Deus e, assim, acolher os outros: viver inclinados para eles.
Em primeiro lugar, acolher-nos à misericórdia de Deus: disto depende tudo. Quando nos apercebemos de que Deus conduz as circunstâncias e as obras impelindo-nos para Ele, o nosso amor e dedicação apostólica crescem. Mais facilmente procuramos abrigo nos braços de Jesus Cristo, com desportivismo na luta interior, com renovados desejos de aproximar d’Ele muitas almas, com uma alegria que nada nem ninguém deve perturbar.
O Amor de Deus mostra-se-nos exigente e sereno ao mesmo tempo. Exigente, porque Jesus Cristo carregou sobre os Seus ombros a Cruz, e quer que O sigamos por esse caminho para colaborar com Ele, de modo a que os frutos da Redenção cheguem a todos. Sereno, porque Jesus não desconhece as nossas limitações, e orienta-nos melhor do que a mais compreensiva das mães. Não somos nós que mudamos o mundo com o nosso esforço: será Deus, capaz de transformar os corações de pedra em corações de carne, que o fará.
O Senhor não exige que nunca nos enganemos, mas que sempre nos levantemos, sem ficarmos agarrados aos nossos erros. Que caminhemos por este mundo com a serenidade e a confiança de filhos. Meditemos com frequência nestas ternas palavras de S. João: na Sua presença tranquilizaremos o nosso coração, ainda que o coração nos acuse de alguma coisa, porque Deus é maior do que nosso coração e conhece tudo [5]. A paz interior não pertence a quem pensa que faz tudo bem, nem aos que não querem amar: a paz está na criatura que volta sempre para Deus, mesmo depois de cair. Jesus Cristo não veio procurar os sãos, mas os doentes [6], e alegra-Se com um amor que se renova em cada dia, apesar dos nossos tropeços, porque recorremos aos sacramentos como à fonte inesgotável do perdão.
[1]. S. Ambrósio, Tratado sobre o Evangelho de S. Lucas VII, 208 (PL 15, 1755).
[2]. S. Josemaria, Temas Atuais do Cristianismo, n. 29.
[3]. Papa Francisco, Discurso na audiência geral, 12-X-2016.
[4]. S. Josemaria, Forja, n. 331.
[5]. 1 Jo 3, 19-20.
[6]. Cfr. Mt 9, 13.
(D. Javier Echevarría, Prelado do Opus
Dei excerto da carta do mês de novembro de 2016)
©
Prælatura Sanctæ Crucis et Operis Dei