Quando Aldous Huxley publicou o seu Brave New World, tendo meditado a experiência das guerras, pareceu ter em vista uma sátira do mundo que persentia, em que os homens seriam produzidos em linhas de montagem segundo necessidades programadas, mas não meditou na submissão a que os povos seriam constrangidos por técnicas menos laboratoriais, mas igualmente eficazes, na produção de efeitos colaterais à margem dos grandes princípios. Foi mais pessimista, como notou Deutscher, o festejado Orwell no aniversário do seu 1984, ao antever uma sociedade, além de totalitária, mergulhada na miséria, a que a ONU chamaria fronteira da pobreza, amenizando o que Josué de Castro chamou a Geografia da Fome. Todos, e os que os acompanharam, foram considerados, pelos príncipes que entretanto governaram, como exagerados ou mesmo absolutamente longe da realidade. Mas se essa atitude deu oportunidade à displicência, o regresso à sua leitura pode ajudar agora a enfrentar a supercomplexidade da circunstância a que finalmente fomos conduzidos, em nome do saber, e do saber fazer. De facto, e ainda estávamos em 1960, já o recordado Deutscher anotava que "a política de hoje, e talvez a do futuro próximo, parece caracterizar-se por um sentimento profundo de pavor - um pavor indefinido de mudanças significativas eminentes". Por esse tempo já não se hesitava em afirmar que um dos objectivos de longo alcance seria eliminar a pobreza, procurando o empenho necessário de pelo menos três gerações. Os anunciados, aprovados, e tornados credíveis, Objectivos do Milénio da ONU coincidem com a terceira geração, mas embora continue a afirmar a capacidade de recolher os apoios financeiros mundiais necessários, e a esperança de concretizar as promessas, os factos, que ninguém assume a responsabilidade de ter produzido, ou pela intervenção personalizada, ou pelo funcionamento dos órgãos de governança mundial consagrados nos tratados, no que se enquadram é na deslocação da pobreza para o norte do Globo, compreendendo parte da União Europeia com o seu processo de consolidação em risco. Um risco demonstrado excessivamente pelo facto de os governantes das duas maiores economias da União procederem, à margem do Tratado de Lisboa, à formulação de cogitações que parece decidirem impor aos frágeis órgãos institucionais, e aos governos mais limitados pelas interdependências, e pela urgência da solidariedade suporte da União em progresso. Já é suficientemente inquietante que tantos centros de decisão, uns visíveis outros desconhecidos, ocupem o vazio deixado pela inacção de órgãos institucionais, a começar pela Assembleia Geral da ONU e pelo seu Conselho Económico e Social, mas os riscos agravam-se quando um organismo como a UNESCO entra em conflito com o estatuto político internacional dos EUA, talvez hoje a distanciar-se do seu anterior poder efectivo pelo globalismo imprevisto em S. Francisco. Decidem não cumprir as suas obrigações institucionais para com a UNESCO, recusando pagar o que devem, porque a votação na admissão da Palestina não coincidiu com o seu voto. O tema merece ser discutido à luz das passadas decisões da ONU sobre a formação de dois Estados, mas neste caso, que não é o primeiro na história da relação dos EUA com a UNESCO, a decisão vem agravar os factores de anarquia da ordem internacional, que multiplica os centros de decisão e poder sem cobertura legal, e que passam a ter apoio no conceito, já há anos ali invocado, de que a dimensão da contribuição financeira regula o poder de voto. Algum dia vão ter de discutir isso com os poderes emergentes, à medida que a balança de poderes financeiros se independentiza da balança de poderes militares, uma realidade já visível na posição da China no G20 e na sua relação com a dívida soberana dos EUA. Uma diplomacia de arrogância não é a mais indicada para ultrapassar a crise, e, no caso presente, não contribui para a pacífica relação entre as áreas culturais do mundo em desordem.
Adriano Moreira in DN online