Para o povo de Deus começa o caminho que o conduzirá
rumo à "nova aurora criada pelo próprio Deus", afirmou o Papa na
manhã de 22 de Fevereiro, quarta-feira de Cinzas, dirigindo-se aos fiéis
presentes na sala Paulo VI para a audiência geral.
Prezados irmãos e irmãs
Nesta Catequese, gostaria de meditar brevemente sobre o tempo da Quaresma, que
começa hoje com a Liturgia de Quarta-Feira de Cinzas. Trata-se de um itinerário
de quarenta dias que nos levará ao Tríduo pascal, memória da paixão, morte e
ressurreição do Senhor, o coração do mistério da nossa salvação. Nos primeiros
séculos de vida da Igreja, este era o tempo em que quantos tinham ouvido e
acolhido o anúncio de Cristo começavam, passo a passo, o seu caminho de fé e de
conversão para receber o sacramento do Baptismo. Tratava-se de uma aproximação
ao Deus vivo e de uma iniciação na fé a realizar gradualmente, mediante uma
mudança interior da parte dos catecúmenos, ou seja, de quantos desejavam
tornar-se cristãos e ser incorporados a Cristo e à Igreja. Sucessivamente,
também os penitentes e depois todos os fiéis foram convidados a viver este
itinerário de renovação espiritual, para conformar cada vez mais a própria
existência com Cristo. A participação de toda a comunidade nas várias fases do
percurso quaresmal ressalta uma dimensão importante da espiritualidade cristã:
é a redenção não de alguns, mas de todos, a estar disponível graças à morte e
ressurreição de Cristo. Portanto, quer os que percorriam um caminho de fé como
catecúmenos para receber o Baptismo, quer os que se tinham afastado de Deus e
da comunidade da fé e procuravam a reconciliação, quer os que viviam a fé em
plena comunhão com a Igreja, todos juntos sabiam que o tempo que precede a
Páscoa é um tempo de metanoia, ou seja de mudança interior, de arrependimento;
o tempo que identifica a nossa vida humana e toda a nossa história como um
processo de conversão que agora se põe em movimento para encontrar o Senhor no
fim dos tempos. Com uma expressão que se tornou típica na Liturgia, a Igreja denomina
o período que hoje começamos "Quadragesima", ou seja o tempo de
quarenta dias e, com uma referência clara à Sagrada Escritura, introduz-nos
assim num contexto espiritual específico. Com efeito, quarenta é o número
simbólico com que o Antigo e o Novo Testamento representam os momentos
salientes da experiência da fé do Povo de Deus. Trata-se de um número que
exprime o tempo da expectativa, da purificação, do regresso ao Senhor e da
consciência de que Deus é fiel às suas promessas. Este número não representa um
tempo cronológico exacto, cadenciado pela soma dos dias. Aliás, indica uma
perseverança paciente, uma prova longa, um período suficiente para ver as obras
de Deus, um tempo dentro do qual se decide assumir as próprias
responsabilidades sem ulteriores demoras. É o tempo das decisões maduras.
O número quarenta aparece antes de tudo na história de Noé.
Por causa do dilúvio, este homem justo transcorre quarenta dias e quarenta
noites na arca, juntamente com a sua família e com os animais que Deus lhe tinha
dito que levasse consigo. E espera outros quarenta dias, depois do dilúvio,
antes de tocar a terra firme, salva da destruição (cf. Gn 7, 4.12; 8, 6). Depois, a próxima etapa: Moisés permanece no
monte Sinai, na presença do Senhor, quarenta dias e quarenta noites, para
receber a Lei. Durante todo este tempo, jejua (cf. Êx 24, 18). Quarenta são os anos de viagem do povo judeu do Egipto
para a Terra prometida, tempo propício para experimentar a fidelidade de Deus.
"Recorda-te de toda essa travessia de quarenta anos que o Senhor, teu
Deus, te fez sofrer no deserto... As tuas vestes não envelheceram sobre ti, e
os teus pés não se magoaram durante estes quarenta anos", diz Moisés no
Deuteronómio, no final destes quarenta anos de migração (Dt 8, 2.4). Os anos de paz de que Israel goza sob os Juízes são
quarenta (cf. Jz 3, 11.30) mas,
transcorrido este tempo, começa o esquecimento dos dons de Deus e o retorno ao
pecado. O profeta Elias emprega quarenta dias para chegar ao Horeb, o monte
onde se encontra com Deus (cf. 1 Rs
19, 8). Quarenta são os dias durante os quais os cidadãos de Nínive fazem
penitência para obter o perdão de Deus (cf. Gn
3, 4). Quarenta são também os anos dos reinos de Saul (cf. Act 13, 21), de David (cf. 2 Sm 5, 4-5) e de Salomão (cf. 1 Rs 11,
41), os três primeiros reis de Israel. Também os Salmos apresentam o
significado bíblico dos quarenta anos, como por exemplo o Salmo 95, do qual
ouvimos um trecho: "Se ouvísseis hoje a sua voz: "Não endureçais os
vossos corações como em Meribá, como no dia de Massá no deserto, quando os
vossos pais me provocaram e me puseram à prova, apesar de terem visto as minhas
obras. Durante quarenta anos essa geração desgostou-me, e Eu disse: é um povo
de coração obstinado, que não compreendeu os meus caminhos!"" (vv.
7c-10). No Novo Testamento Jesus, antes de começar a vida pública, retira-se no
deserto por quarenta dias, sem comer nem beber (cf. Mt 4, 2): alimenta-se da
Palavra de Deus, que utiliza como arma para derrotar o diabo. As tentações de
Jesus evocam as que o povo judeu enfrentou no deserto, mas que não soube
vencer. Quarenta são os dias durante os quais Jesus ressuscitado instrui os
seus, antes de subir ao Céu e enviar o Espírito Santo (cf. Act 1, 3).
Com este recorrente número quarenta é descrito um contexto espiritual que
permanece actual e válido, e a Igreja, precisamente mediante os dias do período
quaresmal, tenciona conservar o seu valor perdurável e fazer com que a sua
eficácia esteja presente. A liturgia cristã da Quaresma tem a finalidade de
favorecer um caminho de renovação espiritual, à luz desta longa experiência
bíblica e sobretudo para aprender a imitar Jesus, que nos quarenta dias
transcorridos no deserto ensinou a vencer a tentação com a Palavra de Deus. Os
quarenta anos da peregrinação de Israel no deserto apresentam atitudes e
situações ambivalentes. Por um lado, eles são a estação do primeiro amor com
Deus e entre Deus e o seu povo, quando Ele falava ao seu coração, indicando-lhe
continuamente o caminho a percorrer. Deus tinha, por assim dizer, feito morada
no meio de Israel, precedia-o dentro de uma nuvem ou de uma coluna de fogo,
providenciava cada dia à sua alimentação, fazendo descer o maná e brotar a água
da rocha. Portanto, os anos que Israel passou no deserto podem ser vistos como
o tempo da eleição especial de Deus e da adesão a Ele por parte do povo: o
tempo do primeiro amor. Por outro lado, a Bíblia mostra também mais uma imagem
da peregrinação de Israel no deserto: é inclusive o tempo das tentações e dos
maiores perigos, quando Israel murmura contra o seu Deus e gostaria de voltar
ao paganismo e constrói para si os próprios ídolos, porque sente a exigência de
venerar um Deus mais próximo e tangível. É também o tempo da revolta contra o
Deus grande e invisível.
Esta ambivalência, tempo da proximidade especial de Deus - tempo do
primeiro amor - e tempo da tentação - tentação da volta ao paganismo -
encontramo-la de modo surpreendente no caminho terreno de Jesus, naturalmente
sem qualquer compromisso com o pecado. Depois do baptismo de penitência no
Jordão, no qual assume sobre Si o destino do Servo de Deus que renuncia a Si
mesmo e vive pelos outros e insere-se entre os pecadores para assumir sobre si
o pecado do mundo, Jesus vai ao deserto para aí permanecer por quarenta dias em
profunda união com o Pai, repetindo assim a história de Israel, todos aqueles
ritmos de quarenta dias ou anos aos quais me referi. Esta dinâmica é uma
constante na vida terrena de Jesus, que procura sempre momentos de solidão para
rezar ao seu Pai e permanecer em íntima comunhão, em íntima solidão com Ele, em
comunhão exclusiva com Ele, e depois voltar para o meio do povo. Mas neste
tempo de "deserto" e de encontro especial com o Pai, Jesus
encontra-se exposto ao perigo e é acometido pela tentação e pela sedução do
Maligno, que lhe propõe um caminho messiânico diferente, distante do desígnio
de Deus, porque passa através do poder, do sucesso e do domínio, e não através
do dom total na Cruz. Eis a alternativa: um messianismo de poder, de sucesso,
ou um messianismo de amor, de doação de si.
Esta situação de ambivalência descreve inclusive a condição da Igreja a
caminho no "deserto" do mundo e da história. Neste
"deserto" nós, crentes, temos certamente a oportunidade de fazer uma
profunda experiência de Deus, que fortalece o espírito, confirma a fé, alimenta
a esperança e anima a caridade; uma experiência que nos torna partícipes da
vitória de Cristo sobre o pecado e sobre a morte mediante o Sacrifício de amor
na Cruz. Mas o "deserto" é também o aspecto negativo da realidade que
nos circunda: a aridez, a pobreza de palavras de vida e de valores, o
secularismo e a cultura materialista, que fecham a pessoa no horizonte mundano
da existência, subtraindo-o a qualquer referência à transcendência. Este é
também o ambiente em que o céu acima de nós está obscuro, porque coberto com as
nuvens do egoísmo, da incompreensão e do engano. Não obstante isto, também para
a Igreja contemporânea o tempo do deserto pode transformar-se em tempo de
graça, porque temos a certeza de que até da rocha mais dura Deus pode fazer
brotar a água viva que sacia e revigora. Caros irmãos e irmãs, nestes quarenta
dias que nos conduzirão à Páscoa de Ressurreição podemos encontrar nova coragem
para aceitar com paciência e com fé todas as situações de dificuldade, de
aflição e de prova, na consciência de que das trevas o Senhor fará nascer o
novo dia. E se formos fiéis a Jesus, seguindo-O no caminho da Cruz, o mundo
luminoso de Deus, o mundo da luz, da verdade e da alegria ser-nos-á como que
restituído: será a nova aurora criada pelo próprio Deus. Bom caminho de
Quaresma para todos vós! No final da audiência geral, o Sumo Pontífice
dirigiu-se aos fiéis presentes, pronunciando em português as seguintes
palavras.
A minha saudação amiga para o grupo escolar da Lourinhã e todos os
peregrinos presentes de língua portuguesa. A Virgem Maria tome cada um pela mão
e vos acompanhe durante os próximos quarenta dias que servem para vos conformar
ao Senhor ressuscitado. A todos desejo uma boa e frutuosa Quaresma!
(© L'Osservatore Romano - 25 de Fevereiro de
2012)