Nota prévia de JPR:
Há já algum tempo escrevi neste blogue um comentário bastante incisivo e crítico a um artigo de Inês Pedrosa, facto que me trouxe alguns dissabores com um membro muito chegado e querido da minha família, que por sua vez nutre uma grande amizade pela escritora.
É da mais elementar justiça deixá-lo aqui expresso e agradecer à Inês Pedrosa o texto que ora nos oferece pela sua lucidez e justiça, ainda que haja um ponto com o qual discordo.
Bem-haja!
Dos políticos pedófilos é proibido falar. Bendita prescrição.
«Há uma coisa que eu nunca poderei perdoar aos políticos: é deixarem sistematicamente sem argumentos a minha esperança».
Miguel Torga, Diário, 14 de Novembro de 1985
De repente, parece que o crime de pedofilia é um exclusivo dos sacerdotes da Igreja Católica. Não haverá pedófilos em nenhuma outra religião? E que dizer das religiões – como o islamismo, em diversos países do Médio Oriente – que não só pactuam como aprovam o casamento forçado de meninas com velhos? Ou o crime de pedofilia, desde que consignado pela lei, deixa de ser crime?
Critica-se o Vaticano por não fazer um acto de contricção suficientemente claro quanto aos crimes dos seus membros. Não entendo porque teria a Igreja de pedir desculpa por crimes que nada têm que ver com a instituição enquanto tal. A religião católica condena a pedofilia, como aliás todos os crimes contra as pessoas, sem olhar a credos ou raças. Nem todas as religiões defendem os direitos humanos em absoluto – mas a Igreja Católica do século XXI defende-os. A História é um longo estendal de crimes imperdoáveis – se nos fixarmos nela, não encontraremos um só período, até ao século XX, em que as pessoas tenham sido consideradas todas igualmente dignas. Ainda hoje, em largas partes do mundo, as mulheres, as crianças ou os pertencentes a etnias diferentes da maioritária são tratados como lixo. A famosa Grécia Antiga era um território de senhores e escravos e uma civilização que oprimia barbaramente as mulheres. Sempre que se fala de pedofilia surgem conversas tão eruditas quanto insidiosas sobre as relações íntimas de aprendizagem entre homens e rapazinhos na Grécia Antiga – como se as iluminações mentais de uma pleîade de filósofos pudessem justificar o injustificável. O brilhantismo de Heidegger não chega para perdoar o nazismo – antes pelo contrário: é importante pensarmos como pode uma cultura subir tão alto e descer tão baixo em simultâneo. A cultura alemã, como a civilização grega, são excelentes campos de análise sociológica, política e filosófica. Como puderam os espíritos criadores da ideia democrática de «polis» considerar a cidadania como um privilégio dos supostamente mais aptos? De que modos não vigora ainda hoje este entendimento do mundo?
A mensagem de Cristo é precisamente a oposta – e se é verdade que a Igreja Católica tem um modo hierárquico e ostentatório de ser e de viver que em nada se coaduna com o modo de viver de Cristo ou a palavra dos Evangelhos, não é menos verdade que é ela quem hoje está, muitas vezes só, junto dos desvalidos. Se assumisse a culpa pelos crimes de pedofilia de um conjunto dos seus elementos, a Igreja estaria a sujar a imagem desses seus outros milhares de padres que se entregam a tornar felizes os que nada têm.
Entretanto o julgamento da pedofilia na Casa Pia eterniza-se. Esta semana surgiu a notícia de que uma das vítimas, transformada em mera testemunha porque os abusos de que foi alvo já prescreveram, ameaçou fazer justiça pelas suas próprias mãos contra os arguidos. Notícia sem alarde – talvez porque o presumível autor dos crimes de pedofilia já prescritos é, segundo o Diário de Notícias, uma «figura do Estado», cujo nome o Tribunal impede que se revele. Não entendo porque razão hão-de prescrever estes crimes – nem, aliás, quaisquer outros. A pedofilia é um crime que se exerce sobre crianças, ou seja, seres frágeis e totalmente desprovidos de poder. É um crime de que a vítima muitas vezes acaba por se sentir cúmplice, e que afecta irreversivelmente a sua identidade e a sua vida. A prescrição, em particular neste crime, representa conivência da lei com o criminoso. A mensagem é a de que, passado um tempo, não há sequelas nem razão para se falar de crime. A revolta desta vítima remetida à brutalidade do papel de testemunha é a prova de que assim não é – e o silêncio obrigatório em torno da «figura do Estado» demonstra quem e o quê está a proteger a Lei: o Poder e os poderosos. As ameaças da vítima foram relatadas ao procurador pelo seu próprio psiquiatra, que teve a coragem de enfrentar o paciente e avisá-lo de que o iria fazer
( condição necessária para a quebra do sigilo profissional). Se todos os psiquiatras tivessem esta coragem, haveria certamente menos crimes. Mas enquanto se admitir a prescrição deste crime tenebroso, os pedófilos continuarão impunes. E a culpa não é da Igreja – é dos políticos, que fazem leis para proteger, antes de mais, os seus correligionários. Não há pedófilos e pedófilos: todos são criminosos. É mais que tempo de sairmos da Grécia Antiga.
(Fonte: ‘Expresso’ na sua edição de 17 de Abril de 2010)
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