Um pouco de Bíblia, retalhada, cosida e interpretada ao gosto popular, uma pitada de teoria da conspiração, mais a Inquisição, inveja a Roma, anti-papismo primário, insinuações pornográficas, umas manchas de incesto e parricídio, mais histórias de seminário e crimes do Padre Amaro e eis que temos sucesso editorial garantido, de Dan Brown a Saramago. A receita vence desde o século XVIII. As pessoas gostam do sórdido, escaldam de entusiasmo com grandes mentiras, inebriam-se com o apedrejamento de tudo quanto inspire ordem, hierarquia e autoridade.
Espanta-me que muitos ainda se alvorocem com um sub-género que nunca reuniu predicados elementares de integridade, que se repete e daí não sai. Espanta-me também que Saramago, em vez de Caim, não escolhesse a figura de Onan, mais conforme a expectativa de quem o lê.
Tanta indignação contra Saramago e tanta invectiva e desabafo acabam, como pedem as regras do mercado, por atrair clientes. Ora, tenho a certeza absoluta que nove em dez daqueles que compraram o Evangelho segundo Jesus Cristo o não leram e aqueles restantes que o fizeram não compreenderam coisa alguma. A obra é ilegível e deixa de ter piada a partir da segunda página, pois da abolição das regras de pontuação nascem o caos intelectivo, enunciativo e dialógico, que juntos, permitem a fruição de um texto, literário ou não. Mutatis mutandis, escrevam uma receita culinária sem vírgulas, pontos finais e parágrafos e provocarão grandes indisposições que terminarão numa consulta de gastroenterologia. Assim é a obra de Saramago, sem tirar.
Depois, Saramago sofre de monomania religiosa, de doença da santidade invertida. Se literariamente é hoje um zero, também não possuiu qualquer autoridade em "Ciências da Bíblia". É um amador e como todos os amadores possui atrevimento proporcional à ignorância. Tenho a absoluta certeza que o homem não sabe uma palavra em latim, nunca leu um tratado de apologética e desconhece coisa tão elementar como a Enciclopédia Católica. Depois, por tudo o que vai dizendo - deixai falar um ignorante, pois nunca devemos impedir um tolo de se enredar nas suas próprias palavras - parece confundir Teologia, Bíblia e História Eclesiástica. Se, em vez de o atacarem, o confrontassem com o seu [des]conhecimento, melhor serviço fariam. Infelizmente, parece haver uma lei de ouro nestas lutas sem interesse e sem consequência.
Saramago vai voltar a escrever sobre o tema. Está a queimar inutilmente os últimos dias da sua passagem por esta vida escrevendo coisas votadas ao esquecimento. É uma pena, pois se o Memorial tinha o seu quê de curioso e o Levantados do Chão ecoava o que de humano havia no Neorealejo, estas coisas são, como o foram os panfletos de Oitocentos, mero lixo doméstico.
Miguel Castelo Branco
(Fonte: Blogue do autor ‘Combustões’ AQUI)
Agradecimento: blogue ‘Ubi caritas’ AQUI
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