As presentes reflexões tomam como ponto de partida alguns ensinamentos de Bento XVI, embora não pretendam fazer uma exposição completa de seu pensamento [1]. Em diversas ocasiões e com diversas palavras, Bento XVI tem manifestado a sua convicção de que o relativismo tem se convertido no problema central que a fé cristã tem que enfrentar nos nossos dias [2]. Alguns meios de comunicação têm interpretado essas palavras como referidas quase exclusivamente ao campo da moral, como se respondessem à vontade de qualificar do modo mais duro possível todos os que não aceitam algum ponto concreto do ensinamento moral da Igreja Católica. Esta interpretação não corresponde ao pensamento nem aos escritos de Bento XVI. Ele alude a um problema muito mais profundo e geral, que se manifesta primariamente no âmbito filosófico e religioso, e que se refere à atitude intencional profunda que a consciência contemporânea – crente ou não crente – assume facilmente com relação à verdade.
A referência à atitude profunda da consciência perante a verdade distingue o relativismo do erro. O erro é compatível com uma adequada atitude da consciência pessoal com relação à verdade. Quem afirmasse, por exemplo, que a Igreja não foi fundada por Jesus Cristo, afirmá-lo-ia porque pensa (equivocadamente) que essa é a verdade e que a tese oposta é falsa. Quem faz uma afirmação deste tipo, pensa que é possível atingir a verdade. Aqueles que a atingem – e na medida em que a atingem – têm razão e aqueles que sustentam a afirmação contraditória se equivocam.
A filosofia relativista, porém, diz que é preciso resignar-se com o fato de que as realidades divinas e as que se referem ao sentido da vida humana, pessoal e social, são substancialmente inacessíveis, e que não existe uma via única para aproximar-se delas. Cada época, cada cultura e cada religião têm utilizado diversos conceitos, imagens, símbolos, metáforas, visões etc. para expressá-las. Essas formas culturais podem opor-se entre si, mas, com relação aos objetos aos quais se referem, teriam todas elas igual valor. Seriam diversos modos – cultural e historicamente limitados – de aludir de modo muito imperfeito a realidades que não se podem conhecer. Em definitiva, nenhum dos sistemas conceituais ou religiosos teria, sob qualquer aspecto, um valor absoluto de verdade. Todos seriam relativos ao momento histórico e ao contexto cultural; daí a sua diversidade e, inclusive, a sua oposição. Mas, dentro dessa relatividade, todos seriam igualmente válidos enquanto vias diversas e complementares para aproximar-se de uma mesma realidade, que, substancialmente, permanece oculta.
Num livro publicado antes de sua eleição como Romano Pontífice, Bento XVI se referia a uma parábola budista [3]. Um rei do norte da Índia reuniu um dia um bom número de cegos que não sabiam o que é um elefante. Fizeram com que alguns dos cegos tocassem a cabeça e lhes disseram: “isto é um elefante”. Disseram o mesmo aos outros, enquanto faziam com que tocassem a tromba, ou as orelhas, ou as patas, ou os pelos da extremidade do rabo do elefante. Depois, o rei perguntou aos cegos o que é um elefante e cada um deu explicações diversas, conforme a parte do elefante que lhe haviam permitido tocar. Os cegos começaram a discutir, e a discussão foi se tornando violenta, até terminar numa briga de socos entre os cegos, que constitui o entretenimento que o rei desejava.
Este conto é particularmente útil para ilustrar a ideia relativista da condição humana. Nós, os homens, seríamos cegos que corremos o perigo de absolutizar um conhecimento parcial e inadequado, inconscientes da nossa intrínseca limitação (motivação teórica do relativismo). Quando caímos nessa tentação, adotamos um comportamento violento e desrespeitoso, incompatível com a dignidade humana (motivação ética do relativismo). O lógico seria que aceitássemos a relatividade das nossas ideias, não só porque isso corresponde à índole do nosso pobre conhecimento, mas também em virtude do imperativo ético da tolerância, do diálogo e do respeito recíproco. A filosofia relativista se apresenta a si mesma como o pressuposto necessário da democracia, do respeito e da convivência. Mas essa filosofia não parece dar-se conta de que o relativismo torna possível a burla e o abuso por parte de quem tem o poder em suas mãos: no conto, o rei que quer se divertir a custa dos pobres cegos; na sociedade atual, aqueles que promovem os seus próprios interesses económicos, ideológicos, de poder político etc. à custa dos demais, mediante o manejo hábil e sem escrúpulos da opinião pública e dos demais recursos do poder.
O que tudo isto tem a ver com a fé cristã? Muito. Porque é essencial ao Cristianismo o apresentar-se a si mesmo como religio vera, como religião verdadeira [4]. A fé cristã se move no plano da verdade, e esse plano é o seu espaço vital mínimo. A religião cristã não é um mito, nem um conjunto de ritos úteis para a vida social e política, nem um princípio inspirador de bons sentimentos privados, nem uma agência ética de cooperação internacional. A fé cristã, antes de mais, nos comunica a verdade acerca de Deus, ainda que não exaustivamente, e a verdade acerca do homem e do sentido de sua vida [5]. A fé cristã é incompatível com a lógica do “como se”. Não se reduz a dizer-nos que temos de nos comportar “como se” Deus nos tivesse criado e, por conseguinte, “como se” todos os homens fôssemos irmãos, mas afirma, com pretensão veritativa, que Deus criou o céu e a terra e que todos somos igualmente filhos de Deus. Diz-nos, além disto, que Cristo é a revelação plena e definitiva de Deus, «resplendor de sua glória e imagem de seu ser» [6], único mediador entre Deus e os homens [7] e, portanto, não pode admitir que Cristo seja somente o rosto com o qual Deus se apresenta aos europeus [8].
Talvez convenha repetir que a convivência e o diálogo sereno com os que não têm fé ou com aqueles que sustentam outras doutrinas não se opõem ao Cristianismo; na verdade, é todo o contrário. O que é incompatível com a fé cristã é a ideia de que o Cristianismo, as demais religiões monoteístas ou não monoteístas, as místicas orientais monistas, o ateísmo etc. são igualmente verdadeiros, porque são diversos modos limitados, cultural e historicamente, de se fazer referência a uma mesma realidade, que, no fundo, nem uns nem outros conhecem. Isto é, a fé cristã se dissolve se se evade, no plano teórico, a perspectiva da verdade, segundo a qual aqueles que afirmam ou negam o mesmo não podem ter igualmente razão nem podem ser considerados como representantes de visões complementares de uma mesma realidade.
A referência à atitude profunda da consciência perante a verdade distingue o relativismo do erro. O erro é compatível com uma adequada atitude da consciência pessoal com relação à verdade. Quem afirmasse, por exemplo, que a Igreja não foi fundada por Jesus Cristo, afirmá-lo-ia porque pensa (equivocadamente) que essa é a verdade e que a tese oposta é falsa. Quem faz uma afirmação deste tipo, pensa que é possível atingir a verdade. Aqueles que a atingem – e na medida em que a atingem – têm razão e aqueles que sustentam a afirmação contraditória se equivocam.
A filosofia relativista, porém, diz que é preciso resignar-se com o fato de que as realidades divinas e as que se referem ao sentido da vida humana, pessoal e social, são substancialmente inacessíveis, e que não existe uma via única para aproximar-se delas. Cada época, cada cultura e cada religião têm utilizado diversos conceitos, imagens, símbolos, metáforas, visões etc. para expressá-las. Essas formas culturais podem opor-se entre si, mas, com relação aos objetos aos quais se referem, teriam todas elas igual valor. Seriam diversos modos – cultural e historicamente limitados – de aludir de modo muito imperfeito a realidades que não se podem conhecer. Em definitiva, nenhum dos sistemas conceituais ou religiosos teria, sob qualquer aspecto, um valor absoluto de verdade. Todos seriam relativos ao momento histórico e ao contexto cultural; daí a sua diversidade e, inclusive, a sua oposição. Mas, dentro dessa relatividade, todos seriam igualmente válidos enquanto vias diversas e complementares para aproximar-se de uma mesma realidade, que, substancialmente, permanece oculta.
Num livro publicado antes de sua eleição como Romano Pontífice, Bento XVI se referia a uma parábola budista [3]. Um rei do norte da Índia reuniu um dia um bom número de cegos que não sabiam o que é um elefante. Fizeram com que alguns dos cegos tocassem a cabeça e lhes disseram: “isto é um elefante”. Disseram o mesmo aos outros, enquanto faziam com que tocassem a tromba, ou as orelhas, ou as patas, ou os pelos da extremidade do rabo do elefante. Depois, o rei perguntou aos cegos o que é um elefante e cada um deu explicações diversas, conforme a parte do elefante que lhe haviam permitido tocar. Os cegos começaram a discutir, e a discussão foi se tornando violenta, até terminar numa briga de socos entre os cegos, que constitui o entretenimento que o rei desejava.
Este conto é particularmente útil para ilustrar a ideia relativista da condição humana. Nós, os homens, seríamos cegos que corremos o perigo de absolutizar um conhecimento parcial e inadequado, inconscientes da nossa intrínseca limitação (motivação teórica do relativismo). Quando caímos nessa tentação, adotamos um comportamento violento e desrespeitoso, incompatível com a dignidade humana (motivação ética do relativismo). O lógico seria que aceitássemos a relatividade das nossas ideias, não só porque isso corresponde à índole do nosso pobre conhecimento, mas também em virtude do imperativo ético da tolerância, do diálogo e do respeito recíproco. A filosofia relativista se apresenta a si mesma como o pressuposto necessário da democracia, do respeito e da convivência. Mas essa filosofia não parece dar-se conta de que o relativismo torna possível a burla e o abuso por parte de quem tem o poder em suas mãos: no conto, o rei que quer se divertir a custa dos pobres cegos; na sociedade atual, aqueles que promovem os seus próprios interesses económicos, ideológicos, de poder político etc. à custa dos demais, mediante o manejo hábil e sem escrúpulos da opinião pública e dos demais recursos do poder.
O que tudo isto tem a ver com a fé cristã? Muito. Porque é essencial ao Cristianismo o apresentar-se a si mesmo como religio vera, como religião verdadeira [4]. A fé cristã se move no plano da verdade, e esse plano é o seu espaço vital mínimo. A religião cristã não é um mito, nem um conjunto de ritos úteis para a vida social e política, nem um princípio inspirador de bons sentimentos privados, nem uma agência ética de cooperação internacional. A fé cristã, antes de mais, nos comunica a verdade acerca de Deus, ainda que não exaustivamente, e a verdade acerca do homem e do sentido de sua vida [5]. A fé cristã é incompatível com a lógica do “como se”. Não se reduz a dizer-nos que temos de nos comportar “como se” Deus nos tivesse criado e, por conseguinte, “como se” todos os homens fôssemos irmãos, mas afirma, com pretensão veritativa, que Deus criou o céu e a terra e que todos somos igualmente filhos de Deus. Diz-nos, além disto, que Cristo é a revelação plena e definitiva de Deus, «resplendor de sua glória e imagem de seu ser» [6], único mediador entre Deus e os homens [7] e, portanto, não pode admitir que Cristo seja somente o rosto com o qual Deus se apresenta aos europeus [8].
Talvez convenha repetir que a convivência e o diálogo sereno com os que não têm fé ou com aqueles que sustentam outras doutrinas não se opõem ao Cristianismo; na verdade, é todo o contrário. O que é incompatível com a fé cristã é a ideia de que o Cristianismo, as demais religiões monoteístas ou não monoteístas, as místicas orientais monistas, o ateísmo etc. são igualmente verdadeiros, porque são diversos modos limitados, cultural e historicamente, de se fazer referência a uma mesma realidade, que, no fundo, nem uns nem outros conhecem. Isto é, a fé cristã se dissolve se se evade, no plano teórico, a perspectiva da verdade, segundo a qual aqueles que afirmam ou negam o mesmo não podem ter igualmente razão nem podem ser considerados como representantes de visões complementares de uma mesma realidade.
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, e professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)
[1] Aqui teremos em conta os seguintes textos: Ratzinger, J.Fede, verità, tolleranza.
Il Cristianesimo e le religioni del mondo. Siena : Cantagalli, 2003 (trad. espanhola: Fe, verdad y tolerância. Salamanca : Ed. Sígueme, 2005); a homilia da “Missa pro eligendo Romano Pontifice”, celebrada na basílica vaticana em 18 de abril de 2005 e o importantíssimo Discurso de Bento XVI à Cúria Romana por ocasião do Natal, de 22 de dezembro de 2005.
[2] Cf., por exemplo, Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza. Il Cristianesimo e le religioni del mondo, cit., p. 121. Veja-se também a homilia anteriormente mencionada de 18 de abril de 2005.
[3] Cf. Ratzinger, J. Fede, verità, tolleranza…, cit. pp. 170 ss.
[4] Cf. ibid., pp. 170-192.[5] Dizemos que o conhecimento de Deus que nos dá a fé não é exaustivo porque no Céu conheceremos a Deus muitíssimo melhor. No entanto, o que nos diz a Revelação é verdadeiro, e é tudo o que Deus quis dar-nos a conhecer de Si mesmo. Não há outra fonte para conhecer mais verdades acerca de Deus. Não há outras revelações.
[6] Hb 1, 3.
[7] Cf 1 Tm 2, 5.
[8] Esta é a tese defendida em princípios do século XX por E. Troeltsch. Cf. L’assoluteza del cristianesimo e la storia delle religioni. Napoli : Morano, 1968.
(Fonte: excerto retirado do site do Opus Dei – Brasil AQUI)
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