
Saramago usou ainda de artifícios rudimentares, como o de criar diálogos infantis (a roçar o ridículo), para chegar a conclusões previsíveis, mesmo antes de as expor. Apresenta Caim como uma espécie de antí-herói que lhe serve de suporte para uma consciência magoada e crítica de um Deus arbitrário. Usa ainda o sistema operatório das "mudanças de presente" para condensar a narrativa, tornando-a inverosímil e completamente postiça. Usa e abusa de expressões deslocadas no tempo, no sentido de parodiar aquilo que acha paródico, esquecendo que a sua obra se torna, ela mesma, um arremedo sem eira nem beira. Passa, de forma abrupta, de sequência a sequência, sem transições prudentes. Enfim, Saramago esgotou todas as possibilidades do mau gosto para chegar a um fim: o de desmascarar o Deus do Antigo Testamento, através de episódios bíblicos (o sacrifício de Isaac, Sodoma e Gomorra, etc.). Faltou-lhe o talento e a técnica. E aos leitores prestou apenas um serviço informativo e formativo, no pior sentido desta palavra. Escreveu ao serviço de um seguidismo serôdio e cego.
Como militante comunista, sinto-me envergonhado. Primeiro, porque Saramago parece querer responder a um certo apelo ideológico da esquerda que se molda no jacobinismo mais rasteiro. Depois, porque acredito que o Partido Comunista (como outros) conta nas suas fileiras com pessoas que se distinguem pela qualidade do seu trabalho e da sua arte, e sobretudo pela honestidade com que o fazem. E a obra Caim de maneira nenhuma se ajusta a esses princípios. Estou ainda pasmado pelo facilitismo de Saramago e pelo facto de certa imprensa abrigar de forma escandalosa um produto medíocre, apressado e sem classificação literária. Falar de Deus, porque se trata de Deus, não é o mesmo que dizer coisas relevantes.
António Jacinto Pascoal,
militante do PCp, Arronches
Carta a Director, publicada no Público de 30 de Outubro de 2009
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