Saramago não ofendeu Deus: ofendeu, isso sim, a literatura. Em 171 páginas de um enredo típico dos guiões de telenovela, não descortinamos nada de sublime, um assomo que seja de boa literatura. Ainda que se possa exceptuar duas ou três frases, todo o resto é forçado, infantil, tosco. A desmontagem que se reclama fazer do Antigo Testamento serve apenas a desmontagem da sua escrita. E o que resta dela? Uma algaraviada de ideias desconjuntadas, com as emendas à vista, sem requinte de linguagem, reforçada por um incomodativo discurso de cumplicidade com o leitor, e uma caterva de ideias feitas servidas de boçalidade e, pior, de imprudência linguística em forma de jargão militante. Na melhor das hipóteses, o leitor sente-se enganado, julgando estar a ler um dos indefectíveis discípulos de Saramago, em cópia mal amanhada. Há, aliás, um tom narrativo quase didáctico, como se Saramago fizesse questão de escrever para uma turma cabotina, pouco acostumada a ler a Bíblia, explicando-a – mal – em tom pretensamente irónico. Mas o que é ou pretende ser ironia em Caim acaba por tornar-se um exercício canhestro (como as patas do burro) de enumeração de narrativas bíblicas que, segundo o autor, lhe servem o propósito de ofender a figura do Deus cristão: contámos cerca de 15 ofensas a Deus – desde o filho da puta (p. 82) ao maléfico/ maligno/cruel (pp. 85, 86, 106, 127, 145), passando pelo materialista opulento (p. 112), desavergonhado (p.113), vingativo (p. 121), injusto (p. 136), incapaz de nos amar (p. 143), estúpido (p. 150), invejoso (p. 164) e caricaturável (p. 173). Em suma, um manual de maus costumes. Mas se Saramago transformou uma obra literária - que é, apesar de valor ínfimo - num ajuste de contas, talvez tenha perdido algum tempo: podia dizer tudo isto numa crónica de jornal e invectivar Deus ainda de outras formas. Nada acrescentaria nada.
Saramago usou ainda de artifícios rudimentares, como o de criar diálogos infantis (a roçar o ridículo), para chegar a conclusões previsíveis, mesmo antes de as expor. Apresenta Caim como uma espécie de antí-herói que lhe serve de suporte para uma consciência magoada e crítica de um Deus arbitrário. Usa ainda o sistema operatório das "mudanças de presente" para condensar a narrativa, tornando-a inverosímil e completamente postiça. Usa e abusa de expressões deslocadas no tempo, no sentido de parodiar aquilo que acha paródico, esquecendo que a sua obra se torna, ela mesma, um arremedo sem eira nem beira. Passa, de forma abrupta, de sequência a sequência, sem transições prudentes. Enfim, Saramago esgotou todas as possibilidades do mau gosto para chegar a um fim: o de desmascarar o Deus do Antigo Testamento, através de episódios bíblicos (o sacrifício de Isaac, Sodoma e Gomorra, etc.). Faltou-lhe o talento e a técnica. E aos leitores prestou apenas um serviço informativo e formativo, no pior sentido desta palavra. Escreveu ao serviço de um seguidismo serôdio e cego.
Como militante comunista, sinto-me envergonhado. Primeiro, porque Saramago parece querer responder a um certo apelo ideológico da esquerda que se molda no jacobinismo mais rasteiro. Depois, porque acredito que o Partido Comunista (como outros) conta nas suas fileiras com pessoas que se distinguem pela qualidade do seu trabalho e da sua arte, e sobretudo pela honestidade com que o fazem. E a obra Caim de maneira nenhuma se ajusta a esses princípios. Estou ainda pasmado pelo facilitismo de Saramago e pelo facto de certa imprensa abrigar de forma escandalosa um produto medíocre, apressado e sem classificação literária. Falar de Deus, porque se trata de Deus, não é o mesmo que dizer coisas relevantes.
António Jacinto Pascoal,
militante do PCp, Arronches
Carta a Director, publicada no Público de 30 de Outubro de 2009
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