Obrigado, Perdão Ajuda-me

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As minhas capacidades estão fortemente diminuídas com lapsos de memória e confusão mental. Esta é certamente a vontade do Senhor a Quem eu tudo ofereço. A vós que me leiam rogo orações por todos e por tudo o que eu amo. Bem-haja!

quarta-feira, 3 de março de 2010

Juízes críticos ou engenheiros sociais?

Referir a realidade social como fonte ética de exigências jurídicas é por vezes uma maneira fácil de evitar a necessária fundamentação para uma proposta, mesmo minoritária. Deste modo se desvaloriza como oposição retrógrada qualquer tentativa de a questionar. Seleccionámos excertos do artigo "Juízes críticos ou engenheiros sociais?" , de Andrés Ollero Tassara, catedrático de Filosofia do Direito, publicado no livro El juez y la cultura contemporánea, editado pelo Conselho Geral do Poder Judicial de Espanha.

É necessário evitar o perigo de identificar o Direito como mínimo ético com modos de ver que já gozam de aceitação social. Pode acontecer também o contrário: que esse mínimo ético esteja ligado a uma presumível realidade social que contenha em si o modelo de uma sociedade futura, utopicamente subscrito por uma auto-convencida minoria. Se na primeira acepção desempenharia um papel abertamente conservador, na segunda seria o instrumento mais eficaz para o exercício de um despotismo ilustrado, auto-satisfeito com o seu registo progressista.

Identificar a realidade social com o que vigora como aceitável socialmente comportaria um risco evidente: que a procura do mínimo ético, capaz de traçar a fronteira entre o jurídico e o moral, entre o justo e o bom, acabará por culminar na imposição de uma ética mínima, ditada pelo menor denominador comum assumido pelas diferentes perspectivas morais em jogo. Se por realidade social se entendesse o conjunto de exigências éticas compartilhadas de facto - em jeito de denominador comum - por todos os membros da sociedade, não haveria de algum modo a possibilidade de a identificar com esse mínimo ético em que deve consistir o direito.

Para começar, convém evitar a tendência simplista de considerar como realidade social o simples reflexo quantitativo dos comportamentos que nela se verificam ser maioritárias. Tal coisa suporia dar livre curso a uma presumível normativa do fáctico, ignorando que nem todo o uso social se pode considerar juridicamente vinculativo. Para o ser, seria necessário que a mera repetição de comportamentos fosse acompanhada por uma opinio iuris, devendo esta identificar-se pelo menos com aquilo que a maioria social considera dever fazer-se, e não com o que faz na realidade. Ignorar que estes dois aspectos podem não coincidir na esfera social - tal como o que sucede na conduta individual - levaria a consequências pouco acertadas.

Discrepância entre conduta e valores

Tal discrepância entre a conduta social fáctica e os valores socialmente em vigor pode dever-se ao facto de boa parte dos cidadãos exercer, por falta de exigência ética ou por se auto-atribuirem uma presumível situação de excepção, uma conduta que em termos gerais não duvidariam considerar reprovável. Isto pode suceder com casos de evasão fiscal ou outras ocorrências relacionadas com corrupção.

Pode também acontecer o contrário: por exemplo, quando colectivos de médicos admitem a despenalização do aborto ou da eutanásia, declarando ao mesmo tempo pretenderem recorrer à objecção de consciência para não intervirem em tais casos.

Condutas sociais e valores dominantes, factos e respectiva valoração, nem sempre coincidem, nem na conduta individual nem na sua generalizada projecção social. Por outro lado, adoptar indevidamente uma delimitação das exigências jurídicas que as identifique com os modos de ver socialmente aceites suporia, por exemplo que, à hora de precisar o alcance de um texto constitucional, nos deveríamos remeter ao que a sociedade no momento presente entende que o referido texto diz. O Tribunal Constitucional espanhol não deixou de se opor a tal enfoque, em problemas como a discriminação por motivo de sexo. Ao tomar tal atitude, abre caminho a uma dimensão utópica, ainda não partilhada por uma sociedade na qual predominam efectivamente modelos machistas, não poucas vezes aceites, sem particular resistência, por um bom número de mulheres.

Uma sociedade abaixo dos mínimos

O Direito consiste num mínimo ético que estabelece um certo nível de exigências que, a não serem reconhecidas, impossibilitaria uma convivência autenticamente humana. Evidentemente que tal não implica que esse nível tenha já sido aceite pela sociedade, nem unânime nem sequer maioritariamente, a ponto de se dar como adquirido que seja um denominador comum fáctico. Por muito pouco maximalista que o direito pretenda ser no campo ético, é fácil imaginar que obrigará uma boa parte da sociedade a reconhecer mais exigências de justiça que as que aceitou até agora.

No que a tal diz respeito, será significativo o jogo prático do art. 9.2 da Constituição, que tem por função tornar realidade o "Estado social e democrático de direito" invocado no art. 1.1 da magna carta espanhola. Apresenta como base o facto de haver um sem número de condições a promover e um sem número de obstáculos a remover antes de a liberdade e a igualdade entre os indivíduos e os grupos serem reais e efectivas.

Quando por realidade social se entende as exigências éticas que a sociedade já comprovadamente tornou suas, não se pode excluir que algumas sociedades, mesmo desenvolvidas, se encontrem até em muitos aspectos ainda abaixo dos mínimos. O Direito sempre conservará uma dimensão promocional e utópica, que aspira a quotas de liberdade e de igualdade ainda por garantir. Se o direito tivesse só como finalidade consolidar a realidade social vigente, estaria destinado a desaparecer; a sua existência justifica-se em boa medida pela vontade de transformar essa realidade, conseguindo um maior e melhor ajustamento das relações sociais.

Apelo ao politicamente correcto

Também se não pode identificar o mínimo ético com uma realidade social frequentemente invocada como fonte de progresso das exigências éticas socialmente vigentes. Por vezes, a referência à realidade social como fonte ética de exigências jurídicas não apela ao aceite socialmente a não ser para se furtar à necessária fundamentação a uma proposta utópica e até minoritária. É mais cómodo dá-la por suposta na sociedade, descartando como resistência atrasada qualquer tentativa de a colocar em questão.

Uma realidade social assim, apenas presumível, acaba por se converter numa proposta auto-positivada lege ferenda, que é expressão do politicamente correcto. Permite a uma minoria, geralmente bem colocada nos meios de comunicação, deter o monopólio do horizonte utópico do ordenamento jurídico. Ressuscita deste modo o despotismo iluminado, que permitirá àquela lúcida minoria com capacidade para captar essa realidade social de cumprimento obrigatório, impor paternalistamente os seus ditames aos demais, sem sequer se dar ao trabalho de os convencer de que essa tarefa os obrigaria.

Não raramente se irá tal atitude apoiar numa realidade social que se ofereceria ao direito como benéfico âmbito neutro no respeitante às controversas propostas morais em jogo. (...)

Entre o ser e o dever

A tentativa positivista de traçar uma linha impermeável entre o ser e o dever ser obriga-a a optar por um dos dois pólos, ao pretender dar resposta a uma pergunta arriscada: que é o direito? Kelsen reconheceu honestamente as limitações da sua opção pelo dever, ao acabar por admitir que a eficácia - radicada no mundo do ser - ao não ser o fundamento da sua validade - que radica no mundo do dever - se convertia na sua condição necessária, se bem que não suficiente. Alf Ross reconhece, não menos coerentemente, os limites da sua opção pelos factos empiricamente constatáveis e admite que a legitimidade alimenta uma obediência "desinteressada", que ultrapassa o efectivo jogo da força táctica, e por isso condiciona por sua vez decisivamente a validade do direito.

O direito, cuja realidade consiste em ser um dever ser, obriga a que o jogo se apresente com menos rigidez, sem delimitação fixa, entre um e outro ponto de referência. Não tem portanto muito sentido apresentar como dilema se está permitido ao jurista emitir um juízo crítico, com a inevitável contribuição subjectiva que isso comporta; ou se o seu papel ortodoxo é comportar-se como técnico, limitando-se a aplicar assepticamente o que foi produzido por quem tinha legitimidade para o fazer.

A questão não se baseia em saber se a segunda alternativa é desejável, pois talvez o fosse de uma perspectiva de garantia de segurança, mas simplesmente se é viável. Quando o desejável não é possível, ignorá-lo só conduz a fingir ideologicamente o inexistente, o que implica a mais grave das ameaças contra a segurança. Disfarçar o jurista de técnico pode ocultar a sua responsabilidade, ou convidá-lo a desempenhá-la sem consciência alguma do alcance ético e político do seu contributo subjectivo.

A função do juiz

Foi com base em pontos de partida metodológicos afins à sociologia que se reconheceu esta realidade. Para Ross, poucas são as dúvidas à hora de prognosticar que "o sonho comum de as ciências sociais algum dia chegarem a constituir uma ‘engenharia social' terá que continuar a ser um sonho". Quando - como acontece com o direito - nos movemos no âmbito da "decisão política", torna-se indispensável conseguir "uma resolução e não uma solução" de mero alcance técnico; "sempre haverá que dar um salto", que ele julga não poder ser racional.

O discernimento crítico não é uma atitude aleatória de alguns juízes, empenhados em converter-se em protagonistas de uma tarefa que se veria perturbada por tal intromissão; faz parte inevitável de toda a actividade jurídica. Os juízes não se dividem entre aqueles que optam por uma tarefa criativa e aqueles que renunciam a ela, mas entre os que - por estarem conscientes da sua criatividade - se sabem obrigados a responder por ela e pelos que a exercem inconsciente e irresponsavelmente.

Tal não implica que a chamada técnica jurídica não desempenhe papel algum. Parte do próprio sentido de responsabilidade referido será procurar apoio para as propostas pessoais nos elementos de fundamentação oferecidas pela legislação; evitar-se-á assim que o inevitável juízo degenere em discricionalidade arbitrária. Mas o juiz não será nunca um engenheiro; será antes alguém que emite juízos de valor, que deverá fundamentar para os tornar compreensíveis e aceitáveis por quem por eles possam ser abrangidos. Pretender que quem vai julgar aja como se tivesse perdido o juízo suporia prestar um fraco favor à realidade social, que acabaria por sofrer as consequências.

Andrés Ollero

Aceprensa

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