Correu nestes dias (2017), nos meios
de comunicação social, uma polémica muito «século XIX», acerca da natureza das
aparições de Fátima. Uns 100 anos antes de Nossa Senhora aparecer em Fátima,
estava no auge o esforço de classificação teológica, como se houvesse o intuito
de fazer concorrência à matemática. Os manuais de doutrina cristã muito «século
XIX» pareciam listas meticulosas de virtudes, de vícios, de graças ...enumerações
de tudo! Felizmente, essa época chegou ao fim e não há entusiasmo para repetir
a experiência. Fátima, que pertence já ao século XX, fica a anos-luz das
alíneas de um catálogo.
Em primeiro lugar, apresenta-se
com uma exigência invulgar. Não propõe uma religião anti-stress, em ritmo
«Zen», mas fala de realidades extremas, como a vida e a morte, o Inferno e o
Paraíso, num desafio sublime: «quereis oferecer-vos a vós mesmos?...», «quereis
consolar o vosso Deus?...». Até onde vai o radicalismo do vosso amor?
Em face disto, discutir a
classificação, ou as circunstâncias é ficar completamente aquém.
As aparições põem diante de nós
um outro mundo, tão real como aquele que respiramos, mas diferente. Os Anjos
não têm corpo. No entanto, os Pastorinhos viram e ouviram um Anjo. Em Fátima, em
1917, também outras pessoas, sem terem visto o Anjo ou Nossa Senhora, viram
brilhos invulgares, viram os ramos das árvores vergar-se ao peso de um corpo
invisível. Como é ver um Anjo? Explicar demasiado só acrescenta palavras à
constatação.
Os corpos gloriosos têm igualmente
o seu próprio mistério. A Bíblia apresenta-nos as aparições de Jesus
ressuscitado aos discípulos e o mistério desses encontros. Algumas vezes, Jesus
atravessou as paredes de uma casa fechada. Outras, tinha o aspecto habitual...
mas era diferente. Pensaram numa fantasia e Jesus teve de comer com eles para
lhes mostrar que era real. Para não parecer talvez um sósia estranho, foi
preciso Jesus mostrar-lhes as feridas da crucifixão. Depois de uma pescaria
impressionante, os apóstolos reconheceram que era Ele, mas não exactamente como
antes, como quando se revê uma pessoa depois de muitos anos. Os dois discípulos
de Emaús acompanham-no uma tarde inteira e só ao jantar O reconheceram e – de
repente –, quando o reconhecem, desaparece da sua presença. Maria Madalena,
dirige a palavra a Jesus junto do sepulcro, mas só percebe com quem está a
falar quando Lhe ouve a voz e Jesus a chama pelo nome. O corpo ressuscitado de
Jesus ou o corpo de Maria mudaram, mas não deixaram de ser reais.
S. Paulo encontrou uma maneira acertada
de falar da ressurreição: semeia-se nesta terra uma semente terrena e
encontraremos no Céu uma árvore frondosa. A árvore e a semente são a mesma
planta, apesar de não parecerem. Quando ressuscitarmos continuaremos a ser nós
próprios, ainda que agora não se consiga imaginar como seremos. Cada um é
distinto em bebé, em adolescente, ou na idade adulta, mas é sempre a mesma
pessoa. Assim também no Céu.
O real não se esgota no comum e
Deus pode alargar a realidade que a vista alcança. Habitualmente, não vemos
Anjos, nem vemos Jesus ou os Santos, tal como os Pastorinhos de Fátima também
não viam habitualmente senão realidades comuns. No entanto, por momentos,
apareceu-lhes o que não costuma ver-se nem ouvir-se.
Nas aparições de Fátima, Nossa
Senhora brilha, como uma luz transparente, de uma beleza deslumbrante. Se é tão
difícil descrever uma paisagem ou uma fisionomia comum, quanto mais difícil é
falar do Céu e de pessoas que ressuscitaram.
Às vezes, proponho-me o desafio
descrever aquele grupo escultórico que está no meio das rochas, na Loca do
Cabeço, representando o Anjo e os três Pastorinhos. É pedra, bem sei, mas as
figuras transparecem uma tensão calma, uma concentração interior que não cabem
nas minhas palavras. Onde é que a Maria Amélia Carvalheira foi buscar a
inspiração? Só uma escultora genial consegue captar uma realidade tão complexa
e «extrair vida» de um bloco de pedra. Depois, tento imaginar a realidade. Porque,
a realidade do Anjo e de Nossa Senhora é de ainda outra ordem, nada se lhe
compara em brilho, em beleza, ou em importância. Se fosse imaginação, a
mensagem de Fátima seria parecida ao relaxamento da música «Zen», mas é mais
real que a pedra.
José Maria C.S. André
21-V-2017
Spe Deus
Sem comentários:
Enviar um comentário