Na próxima quinta-feira passa o cinquentenário de uma das realizações mais espantosas da humanidade. O início do 21º concílio ecuménico da Igreja Católica constitui um acontecimento decisivo para os fiéis mas, mesmo em termos meramente históricos, é um facto ímpar.
Primeiro porque envolve uma das instituiçõe mais notáveis da humanidade. Não só é a maior comunidade religiosa mas, em certo sentido, é também a maior, mais antiga e influente organização de sempre. Só que, como dizer isto criaria irritação em certos sectores, será mais pacífico afirmar que constitui indiscutivelmente uma das mais vastas e relevantes instituições mundiais.
Mais surpreendente, praticamente inédito, é que tal entidade possa entrar voluntariamente num processo de profunda reforma interna. É raríssimo que organizações desta dimensão e influência consigam sequer simples reestruturações, quanto mais esforços desta magnitude. A coisa fica ainda mais incrível ao notar que o projecto foi provocado, não por necessidade premente ou acontecimento externo, mas por intuição profética de um homem providencial. Isto faz que, até na longa lista dos concílios, o último seja único.
A Igreja Católica é sem dúvida a instituição mais reformada de sempre. Os sete primeiros concílios trataram da pureza da doutrina contra heresias, mas os 14 seguintes, ao longo de 1097 anos, ocuparam-se de reorganização eclesial. Em todos, porém, existia um problema urgente que exigia resposta dos padres conciliares. No maior e mais influente, em Trento de 1545 a 1563, fez-se o ajustamento ao humanismo, que criara já uma suposta "reforma" por parte dos luteranos, que realmente fora uma ruptura. Coube ao Concílio a verdadeira, e tão esperada, reforma. Mas em 1962 ninguém esperava nada. Foi surpresa total.
Realmente em meados do século XX a Igreja não defrontava nenhum desafio visível. É verdade que há mais de 200 anos sofria a atitude hostil, muitas vezes violenta, da modernidade. Pode dizer-se até que fora essa dificuldade a motivar o Concílio anterior, Vaticano I, aliás interrompido brutalmente à mão militar em 1870. Mas 92 anos depois a pressão já não era candente. O motor do Concílio foi apenas o ardor pastoral de João XXIII.
Uma vez deflagrado o processo, tornou-se evidente a razão por que outras instituições nunca o fazem: é muito difícil equilibrar a necessidade de mudança com o risco de fractura ou distorção. A ânsia que sempre motivou a Igreja nos sucessivos concílios foi o regresso à pureza da sua identidade e missão, mas a multidão histórica de heresias mostra a dificuldade de fazê-lo com verdade. O processo foi longo e doloroso mas 50 anos depois vemos hoje que foi coroado de um êxito espantoso e inesperado. Ainda existem os que recusam a mudança ou condenam a inércia, mas a verdade é que o II Concílio do Vaticano conseguiu uma transformação formal mais profunda do que alguém poderia prever, enquanto reforçava a fidelidade doutrinal e a concórdia interna. Ninguém esperaria mais e melhor dos padres conciliares.
O propósito da reunião era claro: "O que mais importa ao Concílio Ecuménico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz" (João XXIII, discurso na abertura do concílio, V.1). Porquê a doutrina?
Vivemos numa época que pensa poder viver sem colocar as perguntas fundamentais da existência, embriagado num utilitarismo míope. Reduzindo a Caridade a mera solidariedade e sem saber onde radicar a Esperança, torna-se cada vez mais claro que o que falta no mundo é a Fé. Ignorando o significado da vida, tudo o resto perde sentido. "O mundo actual apresenta-se, assim, simultaneamente poderoso e débil, capaz do melhor e do pior, tendo patente diante de si o caminho da liberdade ou da servidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade ou do ódio" (Gaudium et Spes, 9).
O mundo, que nunca seria capaz de fazer um concílio, precisa da Fé que este proclamou. Meio século depois Bento XVI, último dos papas do Concílio, propõe um Ano da Fé.
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