Depois de um Inverno prolongado e de uma Primavera tardia, o sol, preguiçoso, despertou por fim do seu leito de nuvens e deu um ar da sua graça. E foi lindo de se ver: de novo as ruas cheias de gente, as crianças nos jardins e até famílias aproveitando o bom tempo à beira-mar. Afoitos banhistas houve que arriscaram um audaz mergulho, em jeito de sacrificado intróito da tão esperada liturgia estival.
Assim faz Deus nas almas: quando os raios da sua graça alcançam o coração humano, como quando a luz do Sol beija uma flor, desabrocham afectos e nascem amores. Coração que não ame é víscera mirrada, sombra de vida, gélida escuridão no Inverno do seu próprio descontentamento. O toque da graça dilata o coração e o abrasa, para que arda, se expanda e se dê: a caridade mais não é que o reflexo do amor divino no espelho de uma alma cristalina.
O êxtase, estádio supremo da ascese, é também etimologicamente saída de si. A expressão mística não é, portanto, sinónimo de narcísico ensimesmamento, mas de plenitude de caridade. Porque só quem sai de si mesmo é feliz e, nos outros, encontra Deus.
Gonçalo Portocarrero de Almada em http://www.ionline.pt/opiniao/extase
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