Dissemos que o relativismo no campo ético-social se apoia numa motivação de ordem prática: quer permitir fazer algo a quem o deseja, sem produzir dano aos demais, e isto seria uma ampliação da liberdade. Mas o valor dessa motivação é só aparente. A mentalidade relativista comporta uma profunda desordem antropológica, que tem custos pessoais e sociais muito altos. A natureza desta desordem antropológica é bastante complexa e altamente problemática. Aqui vou mencionar só dois problemas.
O primeiro é que a mentalidade medieval está unida a uma excessiva acentuação da dimensão técnica da inteligência humana e dos impulsos ligados à expansão do eu com os quais essa dimensão da inteligência está relacionada, o que leva consigo a depressão da dimensão sapiencial da inteligência e, por conseguinte, das tendências transitivas e transcendentes da pessoa, com as quais esta segunda dimensão da inteligência está aparentada.
O que aqui se chama dimensão técnica da inteligência humana e que outros autores chamam por outros nomes [1] é a evidente e necessária atividade da inteligência que nos permite orientar-nos no meio ambiente, garantindo a subsistência e a satisfação das necessidades básicas. Cunha conceitos, capta relações, conhece a ordem das coisas etc. com a finalidade de dominar e de explorar a natureza, fabricar os instrumentos e obter os recursos que necessitamos. Graças a esta função da inteligência, as coisas e as forças da natureza tornam-se objetos domináveis e manipuláveis para o nosso proveito. Deste ponto de vista, conhecer é poder: poder dominar, poder manipular, poder viver melhor.
A função sapiencial da inteligência visa, pelo contrário, a entender o significado do mundo e o sentido da vida humana. Cunha conceitos não com a finalidade de dominar, mas de alcançar as verdades e as concepções do mundo que possam dar resposta satisfatória à pergunta pelo sentido de nossa existência, resposta que, em longo prazo, nos resulta tão necessária como o pão e a água.
A sistemática fuga ou evasão do plano da verdade, que estamos chamando mentalidade relativista, comporta um desequilíbrio destas duas funções da inteligência e das tendências que a ela estão ligadas. O predomínio da função técnica significa o predomínio, em nível pessoal e cultural, dos impulsos voltados aos valores vitais (o prazer, o bem estar, a ausência de sacrifício e de esforço), através dos quais se afirma e se expande o eu individual. A depressão da função sapiencial da inteligência comporta a inibição das tendências transitivas, isto é, das tendências sociais e altruístas e, sobretudo, uma diminuição da capacidade de auto-transcendência, em razão do que a pessoa fica encerrada nos limites do individualismo egoísta. Em termos mais simples: o afã ansioso de ter, de triunfar, de subir, de descansar e de se divertir, de levar uma vida fácil e prazenteira, prevalece com sobras sobre o desejo de saber, de refletir, de dar um sentido ao que se faz, de ajudar os demais com o próprio trabalho, de transcender o reduzido âmbito dos nossos interesses vitais imediatos. Fica quase bloqueada a transcendência horizontal (voltada aos demais e à coletividade) e também a vertical (voltada aos valores ideais absolutos, voltada a Deus).
O segundo problema está estreitamente vinculado ao primeiro. A falta de sensibilidade para com a verdade e para com as questões relativas ao sentido do viver leva consigo a deformação – quando não a corrupção – da ideia e da experiência da liberdade; da própria liberdade, em primeiro lugar. Não pode estranhar que a consolidação social e legal dos modos de vida congruentes com a desordem antropológica de que estamos falando se fundamentem sempre invocando a liberdade, realidade certamente sacrossanta, mas que é preciso entender em seu verdadeiro sentido. Invoca-se a liberdade como liberdade de abortar, liberdade de ignorar, liberdade de não saber falar senão com palavras soezes, liberdade de não dever dar razão das próprias convicções, liberdade de incomodar e, antes de tudo e sobretudo, liberdade de impor aos demais uma filosofia relativista, que todos teríamos que aplaudir como filosofia da liberdade. Quem lhe negar o aplauso será submetido a um processo de linchamento social e cultural muito difícil de aguentar. Penso que estas considerações podem ajudar a entender em que sentido Bento XVI tem falado de “ditadura do relativismo”.
Tudo isto também tem muito a ver, negativamente, com a fé cristã. Quem pensa que existe uma verdade e que essa verdade pode ser alcançada com certeza mesmo em meio de muitas dificuldades, quem pensa que nem tudo pode ser de outra maneira, isto é, quem pensa que a nossa capacidade de modelar culturalmente o amor, o casamento, a geração, a ordenação da convivência no Estado etc. tem limites que não se podem superar, pensa, em definitiva, que existe uma inteligência mais alta do que a humana. É a inteligência do Criador, que determina o que as coisas são e os limites do nosso poder de transformá-las. O relativista pensa o contrário. O relativismo parece um agnosticismo. Quem o puder pensar até o final verá muito mais afim o ateísmo prático. Não me parece compatível a convicção de que Deus criou o homem e a mulher com a ideia de que pode existir um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isto só será possível se o casamento fosse simplesmente uma criação cultural: nós o estruturamos, há séculos, de um modo, e agora somos livres para estruturá-lo de outro modo.
O relativismo responde a uma concepção profunda da vida que trata de impor. O relativista pensa que o modo de alcançar a maior felicidade possível de se conseguir neste pobre mundo nosso – que sempre é uma felicidade fragmentada e limitada – é evadir o problema da verdade, que seria uma complicação inútil e nociva, causa de tantas quebra-cabeças. Mas esta concepção se encontra com o problema de que os homens, além de desejarem ser felizes, de quererem gozar, de aspirarem a carecer de vínculos para se moverem à vontade, têm também uma inteligência e desejam conhecer o sentido do seu viver. Aristóteles iniciou a sua Metafísica dizendo que todo homem, por natureza, deseja saber [2]. E Cristo acrescentou que «não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus» [3].
O desejo de saber e a fome da palavra que procede da boca de Deus são inextinguíveis, e nenhum aparato comunicativo ou coercitivo poderá fazê-los desaparecer da vida humana. Por isso, estou convencido de que a hora atual é uma hora cheia de esperança e de que o futuro é muito mais promissor do que parece. Com as presentes reflexões, que não querem ser negativas, só se pretendeu expor com seriedade e realismo o aspecto da presente conjuntura que Bento XVI tem chamado relativismo, bem como a sua incidência na prática e na difusão da fé cristã no mundo atual.
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, e professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)
O primeiro é que a mentalidade medieval está unida a uma excessiva acentuação da dimensão técnica da inteligência humana e dos impulsos ligados à expansão do eu com os quais essa dimensão da inteligência está relacionada, o que leva consigo a depressão da dimensão sapiencial da inteligência e, por conseguinte, das tendências transitivas e transcendentes da pessoa, com as quais esta segunda dimensão da inteligência está aparentada.
O que aqui se chama dimensão técnica da inteligência humana e que outros autores chamam por outros nomes [1] é a evidente e necessária atividade da inteligência que nos permite orientar-nos no meio ambiente, garantindo a subsistência e a satisfação das necessidades básicas. Cunha conceitos, capta relações, conhece a ordem das coisas etc. com a finalidade de dominar e de explorar a natureza, fabricar os instrumentos e obter os recursos que necessitamos. Graças a esta função da inteligência, as coisas e as forças da natureza tornam-se objetos domináveis e manipuláveis para o nosso proveito. Deste ponto de vista, conhecer é poder: poder dominar, poder manipular, poder viver melhor.
A função sapiencial da inteligência visa, pelo contrário, a entender o significado do mundo e o sentido da vida humana. Cunha conceitos não com a finalidade de dominar, mas de alcançar as verdades e as concepções do mundo que possam dar resposta satisfatória à pergunta pelo sentido de nossa existência, resposta que, em longo prazo, nos resulta tão necessária como o pão e a água.
A sistemática fuga ou evasão do plano da verdade, que estamos chamando mentalidade relativista, comporta um desequilíbrio destas duas funções da inteligência e das tendências que a ela estão ligadas. O predomínio da função técnica significa o predomínio, em nível pessoal e cultural, dos impulsos voltados aos valores vitais (o prazer, o bem estar, a ausência de sacrifício e de esforço), através dos quais se afirma e se expande o eu individual. A depressão da função sapiencial da inteligência comporta a inibição das tendências transitivas, isto é, das tendências sociais e altruístas e, sobretudo, uma diminuição da capacidade de auto-transcendência, em razão do que a pessoa fica encerrada nos limites do individualismo egoísta. Em termos mais simples: o afã ansioso de ter, de triunfar, de subir, de descansar e de se divertir, de levar uma vida fácil e prazenteira, prevalece com sobras sobre o desejo de saber, de refletir, de dar um sentido ao que se faz, de ajudar os demais com o próprio trabalho, de transcender o reduzido âmbito dos nossos interesses vitais imediatos. Fica quase bloqueada a transcendência horizontal (voltada aos demais e à coletividade) e também a vertical (voltada aos valores ideais absolutos, voltada a Deus).
O segundo problema está estreitamente vinculado ao primeiro. A falta de sensibilidade para com a verdade e para com as questões relativas ao sentido do viver leva consigo a deformação – quando não a corrupção – da ideia e da experiência da liberdade; da própria liberdade, em primeiro lugar. Não pode estranhar que a consolidação social e legal dos modos de vida congruentes com a desordem antropológica de que estamos falando se fundamentem sempre invocando a liberdade, realidade certamente sacrossanta, mas que é preciso entender em seu verdadeiro sentido. Invoca-se a liberdade como liberdade de abortar, liberdade de ignorar, liberdade de não saber falar senão com palavras soezes, liberdade de não dever dar razão das próprias convicções, liberdade de incomodar e, antes de tudo e sobretudo, liberdade de impor aos demais uma filosofia relativista, que todos teríamos que aplaudir como filosofia da liberdade. Quem lhe negar o aplauso será submetido a um processo de linchamento social e cultural muito difícil de aguentar. Penso que estas considerações podem ajudar a entender em que sentido Bento XVI tem falado de “ditadura do relativismo”.
Tudo isto também tem muito a ver, negativamente, com a fé cristã. Quem pensa que existe uma verdade e que essa verdade pode ser alcançada com certeza mesmo em meio de muitas dificuldades, quem pensa que nem tudo pode ser de outra maneira, isto é, quem pensa que a nossa capacidade de modelar culturalmente o amor, o casamento, a geração, a ordenação da convivência no Estado etc. tem limites que não se podem superar, pensa, em definitiva, que existe uma inteligência mais alta do que a humana. É a inteligência do Criador, que determina o que as coisas são e os limites do nosso poder de transformá-las. O relativista pensa o contrário. O relativismo parece um agnosticismo. Quem o puder pensar até o final verá muito mais afim o ateísmo prático. Não me parece compatível a convicção de que Deus criou o homem e a mulher com a ideia de que pode existir um casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isto só será possível se o casamento fosse simplesmente uma criação cultural: nós o estruturamos, há séculos, de um modo, e agora somos livres para estruturá-lo de outro modo.
O relativismo responde a uma concepção profunda da vida que trata de impor. O relativista pensa que o modo de alcançar a maior felicidade possível de se conseguir neste pobre mundo nosso – que sempre é uma felicidade fragmentada e limitada – é evadir o problema da verdade, que seria uma complicação inútil e nociva, causa de tantas quebra-cabeças. Mas esta concepção se encontra com o problema de que os homens, além de desejarem ser felizes, de quererem gozar, de aspirarem a carecer de vínculos para se moverem à vontade, têm também uma inteligência e desejam conhecer o sentido do seu viver. Aristóteles iniciou a sua Metafísica dizendo que todo homem, por natureza, deseja saber [2]. E Cristo acrescentou que «não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus» [3].
O desejo de saber e a fome da palavra que procede da boca de Deus são inextinguíveis, e nenhum aparato comunicativo ou coercitivo poderá fazê-los desaparecer da vida humana. Por isso, estou convencido de que a hora atual é uma hora cheia de esperança e de que o futuro é muito mais promissor do que parece. Com as presentes reflexões, que não querem ser negativas, só se pretendeu expor com seriedade e realismo o aspecto da presente conjuntura que Bento XVI tem chamado relativismo, bem como a sua incidência na prática e na difusão da fé cristã no mundo atual.
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, e professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)
[1] Philipp Lersch a chama função intelectual e denomina função espiritual da inteligência a que nós chamamos função sapiencial. Cf. Lersch, Ph. La estrutuctura de la personalidad, 4ª ed. Barcelona : Scientia, 1963, pp. 399-404.
[2] Cf. Aristóteles. Metafísica, I, 1: 980 a 1.
[3] Mt 4, 4
[2] Cf. Aristóteles. Metafísica, I, 1: 980 a 1.
[3] Mt 4, 4
(Fonte: excerto retirado do site do Opus Dei – Brasil AQUI)
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