Vasco Graça Moura |
O fado de Lisboa é um género híbrido e nem sequer muito antigo (Rui Vieira Nery situa as primeiras referências documentais que lhe são feitas no segundo terço do século XIX). Nasce no Brasil e, transplantado para Lisboa, começa por ser dança de bordel e canção de rameiras. Mas, vindo de além Atlântico, mantinha uma relação com as origens africanas da música dos escravos negros e hoje ainda se pode notar nele algum parentesco com a música brasileira, com a cabo-verdiana e com algum jazz. Não tanto porque o encontremos nos exemplos de época numa perspectiva arqueológica do exame de modinhas e lunduns, mas porque a inovação musical que nele se opera tem intuitivamente presente essa relação ou redescobre essas afinidades.
Nas letras populares que, já aclimatado em Portugal, foram sendo cantadas no fado, era natural que se tivesse desenvolvido uma propensão para falar da saudade que, em literatura, anda entre nós com expressão lírica desde os cancioneiros medievais e com expressão teórica desde o rei D. Duarte.
Como canção de Lisboa, nessa primeira época, o fado situava-se num mundo boémio e muito humilde, de varinas e mulheres da vida, artesãos e marujos, e circunscrevia-se a uns poucos bairros pobres (Alfama, Mouraria) e às suas tabernas. Houve também um fado proletário e anarquista, mas que terá deixado de ter eco popular depois das primeiras décadas do século XX.
Tal como o conhecemos, o fado resulta em grande parte da exigência legal de profissionalização dos intérpretes (1927), do aparecimento das casas típicas em Lisboa, da voga do teatro de revista, do apuramento de letristas populares, compositores e instrumentistas, bem como das exigências da nova indústria discográfica. A partir da década de 1930, não exprime preocupações ideológicas (até pelo facto de funcionar uma censura) e explora exaustivamente e com grande intensidade lírica toda uma série de temas ligados ao amor e às suas vicissitudes (ciúme, paixão, saudade, perda do ser amado...), ao Tejo, a lugares e tempos de Lisboa, becos e vielas, capelas e mercados, e também à vida ligada ao rio e ao mar, a que entretanto se juntam modalidades de marialvismo "ribatejano", ligadas à tourada e ao cavalo.
Os poetas populares têm um papel fundamental nessa fase. São da sua autoria muitos dos fados que continuamos a recordar e que, nalguns casos, atingem uma perfeição técnica inexcedível e de elaboração muito sofisticada, sobretudo em jogos e engenhos de forma e de sentido que têm longa tradição na poesia portuguesa. Mas os poetas ditos cultivados (ou gente ligada ao jornalismo) tinham já feito a sua aparição.
E depois, Amália provoca uma revolução, fazendo entrar de pleno a grande literatura nos territórios do fado e forçando os paradigmas musicais a incorporar outros contributos que hoje reputamos essenciais, como o de Alain Oulman.
Entretanto, as técnicas interpretativas evoluíram muito. E hoje a força do audiovisual introduz modelos e alterações de gosto, cria novas competitividades e confron- tos qualitativos, faz tudo isso em tempo real e apela à juventude. O público do fado é cada vez menos composto por saudosistas envelhecidos e sobreviventes das gerações anteriores (que, aliás, têm um papel de enorme relevo na transmissão de um saber, de uma sensiblidade e de um gosto de experiências feitos) e cada vez mais pelas novas gerações, abertas a um grande sincretismo de manifestações musicais.
Os fadistas cantam cada vez mais autores de poesia dita cultivada. A partir de Carlos do Carmo, têm qualificações escolares e académicas que eram impensáveis nos da geração de Amália. Alimentam uma relação muito mais consistente e versátil com o mundo da cultura e das artes. Procuram conjugar tradição, cosmopolitismo e modernidade. Não recuam ante novas experiências e efeitos vocais e instrumentais. Perceberam que o fado é um género aberto e cada vez mais híbrido. Circulam por todo o mundo e dão espectáculos nos lugares mais prestigiados. São muitos. Ajudam a modelar a expressão de uma sensibilidade numa língua com longa e fortíssima tradição literária. Incorporam nos seus fados muito do que somos.
Embora tivesse acabado por utilizá-lo como elemento de propaganda cá dentro e lá fora, o Estado Novo considerava o fado uma canção degenerada e perigosa para a juventude. A esquerda pensava mais ou menos a mesma coisa.
Hoje, que tanta coisa mudou, estará o fado a tornar-se um dos elementos da identidade nacional?
Vasco Graça Moura in DN online
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