A vida e a
obra do Cardeal Newman poderiam ser realmente definidas como um extraordinário
e extenso comentário ao problema da consciência [...]. Quem não se recorda
[...] da famosa frase acerca da consciência na carta que dirigiu ao duque de
Norfolk? Diz assim: "Se tivesse de brindar pela religião, o que é
altamente improvável, fá-lo-ia pelo Papa. Mas em primeiro lugar pela consciência.
Só depois o faria pelo Papa"[1]. Newman queria que a sua resposta fosse uma
adesão clara ao Papado em face da contestação de Gladstone, mas também queria que
fosse, em face das formas erróneas do "ultramontanismo", uma
interpretação do Papado que só pode ser concebido adequadamente quando visto de
forma conjunta com o primado da consciência, não como oposto a ela, mas como
algo que a funda e lhe dá garantia. É difícil para o homem moderno, que pensa
sempre na subjectividade como oposta à autoridade, entender este problema. Para
ele, a consciência está do lado da subjectividade e é expressão da liberdade do
sujeito, enquanto a autoridade aparece como urna limitação, e até como uma
ameaça e negação, para essa liberdade. É preciso aprofundar mais em tudo isto
para entender de novo a perspectiva em que essa oposição não é válida.
O conceito
central de que Newman se serve para unir autoridade e subjectividade é o da verdade.
Não
tenho reparos em dizer que a verdade é a ideia central da sua luta espiritual.
A consciência ocupa para ele um lugar central porque a verdade está no centro.
Dito de outra maneira: em Newman, a importância do conceito de consciência está
unida à excelência do conceito de verdade [...]. A presença constante da ideia
de consciência não significa para ele a defesa, no século XIX e em
contraposição à neo-escolástica "objetivista", de uma filosofia ou
uma teologia da subjectividade. O sujeito merece, a seu ver, uma atenção como
não havia despertado talvez desde Santo Agostinho. Mas é uma atenção na linha
de Santo Agostinho, não na da filosofia subjectivista da modernidade. Ao ser
elevado ao cardinalato, Newman confessou que toda a sua vida tinha sido uma
luta contra o liberalismo. Poderíamos acrescentar: e também contra o subjectivismo
cristão tal como o encontrou no movimento evangélico do seu tempo, e que constituiu
o primeiro degrau de um caminho de conversão que duraria toda a sua vida.
A consciência
não significa para Newman a norma do sujeito em oposição às exigências da
autoridade num mundo sem verdade [...], mas, antes, a presença clara e
imperiosa da voz da verdade no sujeito. A consciência é a anulação da mera subjectividade
no ponto em que se tangenciam a intimidade do homem e a verdade de Deus. São
significativos os versos que escreveu na Sicília em 1833: "Eu amava o meu
próprio caminho. Agora Te peço,
ilumina-me para Te seguir"[2]. A conversão ao catolicismo não foi para Newman
uma questão de gosto pessoal ou uma necessidade anímica subjectiva. Já em 1844,
no umbral de sua conversão, referia-se ao tema com estas palavras:
"Ninguém pode ter uma opinião mais desfavorável que eu sobre a situação
actual dos católicos"[3].
Mas
importava-lhe mais obedecer à verdade, mesmo contra o seu próprio sentir, que seguir
o seu gosto, os vínculos de amizade e os caminhos trilhados.
Parece-me
muito significativo que ele tenha sublinhado a prioridade da verdade sobre o bem
na hierarquia das virtudes [...]. Homem de consciência é aquele que não compra tolerância,
bem-estar, êxito, reputação e aprovação públicas renunciando à verdade.
Nisso Newman
coincide com outra grande testemunha britânica da consciência, com Thomas More,
para quem a consciência nunca foi expressão de uma vontade obstinada nem de um
heroísmo caprichoso. Thomas More contava-se a si mesmo entre os mártires timoratos,
e dizia que só depois de muitos atrasos e inumeráveis questionamentos tinha conseguido
levar a sua alma a obedecer à consciência, a essa obediência à verdade que deve
estar acima das instâncias sociais e dos gostos pessoais. Aparecem então dois critérios
para distinguir a presença de uma verdadeira voz da consciência: que não coincida
com os desejos e gostos próprios, nem, por outro lado, com o que é mais
benéfico para a sociedade, com o consenso do grupo ou as exigências do poder
político ou social.
Chegados a
este ponto, parece natural lançar um olhar sobre os problemas da nossa época. O
indivíduo não deve trair a verdade reconhecida pela sua consciência para comprar
o progresso e o bem-estar. A sua humanidade não o permite. Mas aqui tocamos o
ponto verdadeiramente crítico da modernidade: o conceito de verdade foi praticamente
abandonado e substituído pelo de progresso. O progresso "é" a
verdade.
Mas, com essa aparente
elevação, esse conceito de progresso desmente-se e anula-se a si próprio, pois
quando não há uma direção, o mesmo movimento tanto pode ser progressivo como
retrógrado. É assim que a teoria da relatividade formulada por Einstein vê o
cosmos físico. Mas penso que também descreve com acerto a situação do cosmos
espiritual do nosso tempo. A teoria da relatividade estabelece que não há nenhum
sistema de referência fixo; cabe a nós considerar um ponto qualquer como referência
e a partir dele tentar medir a totalidade, pois só assim poderemos obter resultados;
da mesma maneira que escolhemos um, poderíamos ter escolhido qualquer outro.
O que se diz a
respeito do cosmos físico reflecte também a segunda inversão "copernicana"
que se deu na nossa relação fundamental com a realidade: a verdade, o absoluto,
o ponto de referência do pensamento deixou de ser evidente. Por isso, já não há
- tampouco do ponto de vista espiritual - nem Norte nem Sul. Não há direção num
mundo sem pontos de referência fixos. O que consideramos direção não assenta
numa medida verdadeira, mas numa decisão nossa e, em última análise, no ponto
de vista da nossa utilidade pessoal. Em semelhante contexto "relativista",
a ética teleológica ou consequencialista converte-se numa ética niilista, mesmo
que não o percebamos. Numa cosmovisão como essa, aquilo a que chamamos
"consciência" é, considerada em profundidade, apenas um modo de
dissimular que não há autêntica consciência, isto é, unidade de conhecimento e
verdade. Cada um cria os seus próprios critérios, e, nessa situação de
relatividade geral, ninguém pode ajudar os outros, e menos ainda dar-lhes instruções.
Agora se
compreende a enorme radicalidade do debate ético actual, cujo centro é a consciência.
Penso que o paralelismo mais aproximado na história das ideias é a controvérsia
entre Sócrates e Platão, por um lado, e os sofistas, por outro, na qual se confrontam
duas atitudes fundamentais: a confiança na capacidade humana de atingir a verdade
e uma visão do mundo na qual o homem cria os seus próprios critérios [de
verdade].
O motivo pelo
qual Sócrates, um pagão, se converteu em certo sentido num profeta de Jesus
Cristo é, a meu ver, essa questão primordial: a sua disposição de acolher a
verdade foi o que permitiu ao modo de fazer filosofia inspirado na sua figura o
privilégio de ser de algum modo um elemento da História Sagrada, e o que fez
dele um recipiente idóneo do Logos cristão, cuja finalidade é a libertação pela
verdade e para a verdade. Se separarmos a luta de Sócrates das contingências
históricas do seu momento, perceberemos rapidamente com que intensidade esse embate
está presente - com outros argumentos e nomes - nos assuntos da polémica do
presente. [...]
[Tal como
ocorria com os sofistas,] em muitos lugares já não se pergunta o que um homem
qualquer pensa. Basta-nos dispor de uma ideia sobre o seu modo de pensar para incluí-lo
na categoria formal conveniente: conservador, reaccionário, fundamentalista, progressista
ou revolucionário. A inclusão num esquema formal torna desnecessária qualquer
explicação do seu pensamento. Algo parecido, mas reforçado, se observa na arte.
O que expressa é indiferente: pode glorificar Deus ou o diabo. O único critério
é que seja formalmente conhecido.
Com isto,
chegamos ao verdadeiro núcleo do nosso assunto. Quando os conteúdos não contam
e a pura fraseologia assume o comando, o poder converte-se em critério supremo,
isto é, transforma-se em categoria - revolucionária ou reacionária - dona de tudo.
Esta é a forma perversa de semelhança com Deus de que fala o relato do pecado original.
O caminho do mero poder e da pura força é a imitação de um ídolo, não a realização
da imagem de Deus. O traço essencial do homem enquanto homem não é perguntar
pelo poder, mas pelo dever, e abrir-se à voz da verdade e suas exigências.
Esta é, a meu
ver, a trama definitiva da luta de Sócrates. Também é o argumento mais profundo
do testemunho dos mártires: os mártires manifestam a capacidade de verdade do
homem como limite de qualquer poder e como garantia da sua semelhança com Deus.
É assim que os mártires se constituem nas grandes testemunhas da consciência, da
capacidade outorgada ao homem de perceber o dever acima do poder e de começar o
progresso verdadeiro e a ascensão efetiva.
[1] Letter to Norfolk, pág. 261
[2] Do
conhecido poema Lead, kindly light
[3] Correspondence of J.H. Newman with J, Kebk and Others,
págs. 351 e 364
(Cardeal Joseph Ratzinger em "Se
quiseres a paz, respeita a consciência de cada um. Consciência e verdade",
em Wahrheit,
Werte, Machí. Prufsteine der pluralistischen Gesellschaft, Herder, Friburgo, 1993; trad. esp. Verdad,
valores, poder, Piedras de toque de Ia sociedad pluralista, Rialp, Madrid, 2000, págs. 56-64)
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