Obrigado, Perdão Ajuda-me

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As minhas capacidades estão fortemente diminuídas com lapsos de memória e confusão mental. Esta é certamente a vontade do Senhor a Quem eu tudo ofereço. A vós que me leiam rogo orações por todos e por tudo o que eu amo. Bem-haja!

sábado, 5 de maio de 2012

Consciência e verdade

A vida e a obra do Cardeal Newman poderiam ser realmente definidas como um extraordinário e extenso comentário ao problema da consciência [...]. Quem não se recorda [...] da famosa frase acerca da consciência na carta que dirigiu ao duque de Norfolk? Diz assim: "Se tivesse de brindar pela religião, o que é altamente improvável, fá-lo-ia pelo Papa. Mas em primeiro lugar pela consciência. Só depois o faria pelo Papa"[1]. Newman queria que a sua resposta fosse uma adesão clara ao Papado em face da contestação de Gladstone, mas também queria que fosse, em face das formas erróneas do "ultramontanismo", uma interpretação do Papado que só pode ser concebido adequadamente quando visto de forma conjunta com o primado da consciência, não como oposto a ela, mas como algo que a funda e lhe dá garantia. É difícil para o homem moderno, que pensa sempre na subjectividade como oposta à autoridade, entender este problema. Para ele, a consciência está do lado da subjectividade e é expressão da liberdade do sujeito, enquanto a autoridade aparece como urna limitação, e até como uma ameaça e negação, para essa liberdade. É preciso aprofundar mais em tudo isto para entender de novo a perspectiva em que essa oposição não é válida.

O conceito central de que Newman se serve para unir autoridade e subjectividade é o da verdade. Não tenho reparos em dizer que a verdade é a ideia central da sua luta espiritual. A consciência ocupa para ele um lugar central porque a verdade está no centro. Dito de outra maneira: em Newman, a importância do conceito de consciência está unida à excelência do conceito de verdade [...]. A presença constante da ideia de consciência não significa para ele a defesa, no século XIX e em contraposição à neo-escolástica "objetivista", de uma filosofia ou uma teologia da subjectividade. O sujeito merece, a seu ver, uma atenção como não havia despertado talvez desde Santo Agostinho. Mas é uma atenção na linha de Santo Agostinho, não na da filosofia subjectivista da modernidade. Ao ser elevado ao cardinalato, Newman confessou que toda a sua vida tinha sido uma luta contra o liberalismo. Poderíamos acrescentar: e também contra o subjectivismo cristão tal como o encontrou no movimento evangélico do seu tempo, e que constituiu o primeiro degrau de um caminho de conversão que duraria toda a sua vida.

A consciência não significa para Newman a norma do sujeito em oposição às exigências da autoridade num mundo sem verdade [...], mas, antes, a presença clara e imperiosa da voz da verdade no sujeito. A consciência é a anulação da mera subjectividade no ponto em que se tangenciam a intimidade do homem e a verdade de Deus. São significativos os versos que escreveu na Sicília em 1833: "Eu amava o meu próprio caminho. Agora Te peço, ilumina-me para Te seguir"[2]. A conversão ao catolicismo não foi para Newman uma questão de gosto pessoal ou uma necessidade anímica subjectiva. Já em 1844, no umbral de sua conversão, referia-se ao tema com estas palavras: "Ninguém pode ter uma opinião mais desfavorável que eu sobre a situação actual dos católicos"[3].

Mas importava-lhe mais obedecer à verdade, mesmo contra o seu próprio sentir, que seguir o seu gosto, os vínculos de amizade e os caminhos trilhados.

Parece-me muito significativo que ele tenha sublinhado a prioridade da verdade sobre o bem na hierarquia das virtudes [...]. Homem de consciência é aquele que não compra tolerância, bem-estar, êxito, reputação e aprovação públicas renunciando à verdade.

Nisso Newman coincide com outra grande testemunha britânica da consciência, com Thomas More, para quem a consciência nunca foi expressão de uma vontade obstinada nem de um heroísmo caprichoso. Thomas More contava-se a si mesmo entre os mártires timoratos, e dizia que só depois de muitos atrasos e inumeráveis questionamentos tinha conseguido levar a sua alma a obedecer à consciência, a essa obediência à verdade que deve estar acima das instâncias sociais e dos gostos pessoais. Aparecem então dois critérios para distinguir a presença de uma verdadeira voz da consciência: que não coincida com os desejos e gostos próprios, nem, por outro lado, com o que é mais benéfico para a sociedade, com o consenso do grupo ou as exigências do poder político ou social.

Chegados a este ponto, parece natural lançar um olhar sobre os problemas da nossa época. O indivíduo não deve trair a verdade reconhecida pela sua consciência para comprar o progresso e o bem-estar. A sua humanidade não o permite. Mas aqui tocamos o ponto verdadeiramente crítico da modernidade: o conceito de verdade foi praticamente abandonado e substituído pelo de progresso. O progresso "é" a verdade.

Mas, com essa aparente elevação, esse conceito de progresso desmente-se e anula-se a si próprio, pois quando não há uma direção, o mesmo movimento tanto pode ser progressivo como retrógrado. É assim que a teoria da relatividade formulada por Einstein vê o cosmos físico. Mas penso que também descreve com acerto a situação do cosmos espiritual do nosso tempo. A teoria da relatividade estabelece que não há nenhum sistema de referência fixo; cabe a nós considerar um ponto qualquer como referência e a partir dele tentar medir a totalidade, pois só assim poderemos obter resultados; da mesma maneira que escolhemos um, poderíamos ter escolhido qualquer outro.

O que se diz a respeito do cosmos físico reflecte também a segunda inversão "copernicana" que se deu na nossa relação fundamental com a realidade: a verdade, o absoluto, o ponto de referência do pensamento deixou de ser evidente. Por isso, já não há - tampouco do ponto de vista espiritual - nem Norte nem Sul. Não há direção num mundo sem pontos de referência fixos. O que consideramos direção não assenta numa medida verdadeira, mas numa decisão nossa e, em última análise, no ponto de vista da nossa utilidade pessoal. Em semelhante contexto "relativista", a ética teleológica ou consequencialista converte-se numa ética niilista, mesmo que não o percebamos. Numa cosmovisão como essa, aquilo a que chamamos "consciência" é, considerada em profundidade, apenas um modo de dissimular que não há autêntica consciência, isto é, unidade de conhecimento e verdade. Cada um cria os seus próprios critérios, e, nessa situação de relatividade geral, ninguém pode ajudar os outros, e menos ainda dar-lhes instruções.

Agora se compreende a enorme radicalidade do debate ético actual, cujo centro é a consciência. Penso que o paralelismo mais aproximado na história das ideias é a controvérsia entre Sócrates e Platão, por um lado, e os sofistas, por outro, na qual se confrontam duas atitudes fundamentais: a confiança na capacidade humana de atingir a verdade e uma visão do mundo na qual o homem cria os seus próprios critérios [de verdade].

O motivo pelo qual Sócrates, um pagão, se converteu em certo sentido num profeta de Jesus Cristo é, a meu ver, essa questão primordial: a sua disposição de acolher a verdade foi o que permitiu ao modo de fazer filosofia inspirado na sua figura o privilégio de ser de algum modo um elemento da História Sagrada, e o que fez dele um recipiente idóneo do Logos cristão, cuja finalidade é a libertação pela verdade e para a verdade. Se separarmos a luta de Sócrates das contingências históricas do seu momento, perceberemos rapidamente com que intensidade esse embate está presente - com outros argumentos e nomes - nos assuntos da polémica do presente. [...]

[Tal como ocorria com os sofistas,] em muitos lugares já não se pergunta o que um homem qualquer pensa. Basta-nos dispor de uma ideia sobre o seu modo de pensar para incluí-lo na categoria formal conveniente: conservador, reaccionário, fundamentalista, progressista ou revolucionário. A inclusão num esquema formal torna desnecessária qualquer explicação do seu pensamento. Algo parecido, mas reforçado, se observa na arte. O que expressa é indiferente: pode glorificar Deus ou o diabo. O único critério é que seja formalmente conhecido.

Com isto, chegamos ao verdadeiro núcleo do nosso assunto. Quando os conteúdos não contam e a pura fraseologia assume o comando, o poder converte-se em critério supremo, isto é, transforma-se em categoria - revolucionária ou reacionária - dona de tudo. Esta é a forma perversa de semelhança com Deus de que fala o relato do pecado original. O caminho do mero poder e da pura força é a imitação de um ídolo, não a realização da imagem de Deus. O traço essencial do homem enquanto homem não é perguntar pelo poder, mas pelo dever, e abrir-se à voz da verdade e suas exigências.

Esta é, a meu ver, a trama definitiva da luta de Sócrates. Também é o argumento mais profundo do testemunho dos mártires: os mártires manifestam a capacidade de verdade do homem como limite de qualquer poder e como garantia da sua semelhança com Deus. É assim que os mártires se constituem nas grandes testemunhas da consciência, da capacidade outorgada ao homem de perceber o dever acima do poder e de começar o progresso verdadeiro e a ascensão efetiva.

[1] Letter to Norfolk, pág. 261
[2]  Do conhecido poema Lead, kindly light
[3]  Correspondence of J.H. Newman with J, Kebk and Others, págs. 351 e 364

(Cardeal Joseph Ratzinger em "Se quiseres a paz, respeita a consciência de cada um. Consciência e verdade", em Wahrheit, Werte, Machí. Prufsteine der pluralistischen Gesellschaft, Herder, Friburgo, 1993; trad. esp. Verdad, valores, poder, Piedras de toque de Ia sociedad pluralista, Rialp, Madrid, 2000, págs. 56-64)

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