
O convite é de um aluno, o João, e chega por mail sem qualquer formalidade. Convoca-nos para a sua escola secundária em Lisboa, às 08.45 de uma manhã de segunda-feira, para falarmos sobre a eutanásia.
Não se trata de uma iniciativa dos docentes mas sim dos alunos; não requerem os deputados para reclamarem, ou para os ouvirem falar de alhos e bugalhos; têm um tema tratado, pesquisado, equacionaram ideias e dúvidas, juntaram cabeças e vozes: uma enfermeira, uma psicóloga, dois deputados de dois grupos parlamentares e uma dirigente de outra força partidária comparecem à chamada. Querem-nos reunidos em volta de mistérios de vida e morte.
Na actividade política é cada vez mais raro um momento em que se consente a simplicidade extrema - hoje quase sempre vista como candura - que afasta confrontos, relega a ideia de vencidos e vencedores, desaconselha a demagogia, desmistifica estatutos efémeros. Instala-se então uma intimidade previsível, as professoras espalhadas ao acaso pela sala e nós, os de fora, como se fôssemos de dentro.
João, 17 anos, toma conta da ocorrência, apresenta o power-point e explica a "boa morte" ao longo dos séculos, através de culturas e de religiões, de como se matavam as crianças, os doentes incuráveis, os deficientes, os velhos em nome de benefícios que hoje não explicamos nem conhecemos. Ele próprio é um resistente, uma história dura, uma vida a saltar obstáculos para manter a cabeça fora da água que alaga um quotidiano de pedras presas aos pés, que o puxam para o fundo, de onde emerge, uma e outra vez, vitorioso sobre pobreza e a negligência. Agora mesmo, aqui nesta sala de aulas, é ele o protagonista.
Não levo nada preparado e descubro que, se algum de nós o fez, desistiu de imediato. Falamos da vida e da morte naquela manhã luminosa, numa sala onde a média de idades parecia recomendar outra coisa. Falamos da dignidade humana, falamos do encarniçamento terapêutico, falamos dos cuidados paliativos e da urgência em criar a rede, falamos da liberdade de escolha e de que liberdade será essa, falamos do medo e de vencer o medo e se isso é possível, falamos de culturas que descartam os mais vulneráveis, das tentações dos anjos salvadores, dos riscos de uma compaixão mal projectada.
João dá a palavra à enfermeira e à psicóloga, porque sabe que só elas podem convocar os moribundos, os rostos e os nomes daqueles com quem partilharam os percursos de fim de vida, cada caso um caso, apaziguando os medos próprios dos mistérios que tantas vezes se transformam, se sublimam e se vencem no confronto com a realidade.
É tempo de ouvir a realidade, percebê-la no âmago de histórias curtas de homens e mulheres, de velhos, jovens, crianças todos com a morte anunciada. Como reagem, como superam o medo, a revolta, a surpresa? Quem se propõe para a caminhada final, quantos procuram arrumar a vida, quantos se reconciliam consigo mesmo, quantos aceitam e porquê? Quantos ouvem a voz de Deus? O que é, afinal, a compaixão num tempo em que todos afirmamos que ninguém é descartável? Quais os riscos de usurparmos a consciência do "outro" quando ele está mais vulnerável e indefeso?
Está na hora e saio. João oferece-me uma rosa branca e agradece. Não tem de quê. Se houvesse tempo, entre os pavilhões e as buganvílias explicava-te porque razão sou eu, e não tu, quem deve estar grata.
Maria José Nogueira Pinto
(Fonte: DN online)
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