Na sua primeira encíclica, Bento XVI convida a fixar a atenção na realidade primordial do amor - na sua dimensão humana e divina - como chave para entender a existência cristã. Com esse ponto de partida, o Papa reflecte também sobre as consequências que o amor ao próximo tem para a vida da Igreja e sobre as relações entre caridade e justiça. Fazemos uma síntese da encíclica, apresentada no dia 25 de Janeiro [de 2006].
"Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo". A fé cristã, ao colocar o amor no centro, assumiu o núcleo da fé de Israel, dando-lhe ao mesmo tempo uma nova profundidade e amplitude. Jesus uniu o mandamento do amor a Deus com o do amor ao próximo. Como Deus nos amou primeiro, agora o amor já não é apenas um «mandamento», mas a resposta a esse dom com que Deus vem ao nosso encontro.
"Num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encíclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por nós. Ficam assim delineadas as duas grandes partes que compõem esta Carta, profundamente relacionadas entre si. A primeira terá uma índole mais especulativa, pois desejo - ao início do meu Pontificado - precisar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com a relação intrínseca daquele Amor com a realidade do amor humano. A segunda parte terá um carácter mais concreto, porque tratará de como cumprir de maneira eclesial o mandamento do amor ao próximo".
Resgatar o amor
O Papa inicia a primeira parte sublinhando que o termo "amor" se tornou hoje uma das palavras de que mais se usa e abusa, a que damos acepções completamente diferentes. Em toda essa multiplicidade de significados sobressai, como arquétipo por excelência, o amor entre o homem e a mulher, em que intervêm inseparavelmente corpo e alma.
Esse amor entre homem e mulher definia-se na antiga Grécia com o nome de eros. Na Bíblia, e sobretudo no Novo Testamento, aprofunda-se no conceito de "amor", e põe-se de lado a palavra eros em favor do termo ágape, para exprimir um amor de doação, oblativo.
Esta nova visão do amor, que é uma novidade essencial do cristianismo, foi julgada com frequência de forma negativa, como se se tratasse de uma rejeição do eros e da corporeidade. Embora tenha havido tendências desse tipo, o sentido deste aprofundamento é outro. O eros, posto na natureza do ser humano pelo seu próprio Criador, tem necessidade de disciplina, de purificação e de amadurecimento para não perder a sua dignidade original e não se degradar em puro "sexo", transformando-se em mercadoria.
Desejo e entrega
A fé cristã considerou sempre o homem como um ser em que o espírito e a matéria se compenetram, alcançando assim uma nova nobreza. "A evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, faz que ele procure agora o carácter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade -«apenas esta única pessoa»- e no sentido de ser «para sempre». O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor é «êxtase»; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus".
Eros e agape exigem não estar nunca separados completamente um do outro. Pelo contrário, quanto mais encontram o seu justo equilíbrio - embora em dimensões diversas -, mais se cumpre a verdadeira natureza do amor. Embora o eros inicialmente seja sobretudo desejo, à medida que se aproximar da outra pessoa centrar-se-á cada vez menos sobre si próprio, procurará cada vez mais a felicidade do outro, entregar-se-á e desejará "ser" para o outro: assim se adentra nele e se afirma o momento do agape.
Com frequência, no debate filosófico e teológico, estas distinções radicalizaram-se até ao ponto de se contraporem: seria, assim, tipicamente cristão o agape; a cultura não-cristã, sobretudo a grega, caracterizar-se-ia pelo eros. Se este antagonismo fosse levado ao extremo, a essência do cristianismo ficaria desvinculada das relações vitais fundamentais da existência humana. Constituiria um mundo totalmente singular, que talvez se pudesse considerar, mas nitidamente apartado do conjunto da vida humana. Quando as duas dimensões se separam completamente uma da outra, produz-se uma caricatura ou, quando muito, uma forma redutiva do amor.
Eros e matrimónio
Nas culturas que circundam o mundo da Bíblia, a imagem de deus e dos deuses permanece pouco clara e é, em si mesma, contraditória. O Deus único, em quem Israel crê, ama pessoalmente. O seu amor é, aliás, um amor de predilecção: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o, embora com o objectivo de salvar justamente deste modo a toda a humanidade. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dúvida como eros que, no entanto é totalmente ágape também: não só porque se dá de todo gratuitamente, sem nenhum mérito anterior, mas também porque é amor que perdoa.
"À imagem do Deus monoteísta corresponde o matrimónio monogâmico. O matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Esta estreita ligação entre eros e matrimónio na Bíblia praticamente não encontra paralelo na restante literatura".
Deus ama-nos primeiro
Em Jesus Cristo, que é o amor de Deus incarnado, o eros-agape atinge a sua forma mais radical. Ao morrer na cruz, entregando-se para elevar e salvar o ser humano, exprime o amor na sua forma mais sublime. Jesus assegurou a este acto de oferenda a sua presença duradoura através da instituição da Eucaristia, em que se nos entrega como um novo maná que nos une a Ele.
Participando na Eucaristia, também nós nos implicamos na dinâmica da sua entrega. Unimo-nos a Ele e ao mesmo tempo unimo-nos a todos os outros a quem Ele se entrega; todos nos tornamos assim "um só corpo". Desse modo, o amor a Deus e o amor ao nosso próximo fundem-se realmente. O duplo mandamento, graças a este encontro com o agape de Deus , já não é somente uma exigência: o amor pode ser "mandado" porque antes se entregou."Na liturgia da Igreja, na sua oração, na comunidade viva dos crentes, nós experimentamos o amor de Deus, sentimos a sua presença e aprendemos deste modo também a reconhecê-la na nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, também nós podemos responder com o amor. Deus não nos ordena um sentimento que não possamos suscitar em nós próprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta «antecipação» de Deus pode, como resposta, despontar também em nós o amor".
Amor para além do sentimento
"No desenrolar deste encontro mostra-se também claramente que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vêm. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas não é a totalidade do amor".
Este encontro entre Deus e nós implica também a nossa vontade e o nosso entendimento. O sim da nossa vontade à vontade de Deus abarca entendimento, vontade e sentimento no acto único do amor. É um processo que está sempre a caminho. O amor nunca se dá por "concluído" e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si próprio.
"Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro. Deste modo, já não se trata de um «mandamento» que do exterior nos impõe o impossível, mas de uma experiência do amor proporcionada do interior, um amor que, por sua natureza, deve ser ulteriormente comunicado aos outros. O amor cresce através do amor".
Um coração que vê
Na segunda parte da encíclica ("Caritas - a prática do amor pela Igreja enquanto «comunidade de amor»), o Papa salienta que o amor pelo próximo, enraizado no amor de Deus, além de ser uma obrigação para cada fiel, o é também para toda a comunidade eclesial. Nos Actos dos Apóstolos diz-se que "os crentes possuíam tudo em comum, pelo que, no meio deles, já não subsiste a diferença entre ricos e pobres. Com o crescimento da Igreja, esta forma radical de comunhão material - verdade seja dita - não pôde ser mantida. Mas o núcleo essencial ficou: no seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna".
Tripla tarefa da Igreja
A consciência dessa obrigação teve um relevo constitutivo na Igreja já desde o seu início e cedo se evidenciou também a necessidade de uma determinada organização para a cumprir com mais eficácia.
Desse modo, na estrutura fundamental da Igreja surgiu a "diaconia" como serviço de amor pelo próximo, levado a cabo comunitariamente e de forma ordenada. Com a difusão progressiva da Igreja, este exercício de caridade confirmou-se como um dos seus âmbitos essenciais.
A natureza íntima da Igreja exprime-se, assim, numa tripla tarefa: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia). São tarefas em que uma pressupõe as outras e não podem separar-se entre si.
Desde o século XIX, "vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma objecção, esplanada depois com insistência sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres - diz-se - não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça. As obras de caridade - a esmola - seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos".
"O marxismo tinha indicado, na revolução mundial e na sua preparação, a panaceia para a problemática social: através da revolução e consequente colectivização dos meios de produção -asseverava-se em tal doutrina - devia de um momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se".
O magistério pontifício, a começar pela encíclica Rerum novarum de Leão XIII (1891) até chegar à trilogia das encíclicas sociais de João Paulo II: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987), Centesimus annus (1991), desenvolveu uma doutrina social muito elaborada, que propõe orientações válidas que vão muito para lá das fronteiras da Igreja.
O papel da Igreja e o do Estado
Para definir com maior cuidado a relação entre o necessário empenho em prol da justiça e o serviço da caridade, é preciso anotar duas situações de facto":
- A criação de uma ordem justa da sociedade e do Estado é dever central da política, e portanto, não pode ser tarefa imediata da Igreja. A doutrina social católica não quer conferir à Igreja um poder sobre o Estado, mas simplesmente purificar e iluminar a razão. Quer contribuir para a formação das consciências, para que as verdadeiras exigências da justiça sejam captadas, reconhecidas e realizadas.
- Ao mesmo tempo, não existe nenhuma normativa estatal que, por justa que seja, possa tornar supérfluo o serviço do amor. O Estado que a tudo quer prover acaba por se tornar uma instância burocrática que não pode assegurar o mais essencial de que o ser humano sofredor -qualquer ser humano - necessita : uma amorosa dedicação pessoal.
Na nossa época, um efeito positivo da globalização manifesta-se no facto de que a solicitude pelo próximo supera as fronteiras das comunidades nacionais, tende a prolongar os seus horizontes ao mundo inteiro. As estruturas do Estado e as associações humanitárias desempenham de diferentes modos a solidariedade expressa pela sociedade civil: deste modo se formaram múltiplas organizações com objectivos caritativos e filantrópicos. Além disso, na Igreja Católica e noutras comunidades eclesiais surgiram novas formas de actividade caritativa. È desejável que se estabeleça entre todas estas instâncias uma colaboração frutífera.
O específico da caridade cristã
É importante que a actividade caritativa da Igreja não perca a sua identidade, tornando-se uma simples variante da organização assistencial, mas que mantenha todo o esplendor da caridade cristã e eclesial. Portanto, a actividade caritativa cristã, além de se fundamentar na competência profissional, deve fazê-lo sobre a experiência de um encontro pessoal com Cristo, cujo amor tocou o coração do crente, suscitando nele o amor pelo próximo.
A caridade cristã deve ser também independente de partidos e ideologias. O programa do cristão -o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus - é «um coração que vê». Este coração vê onde há necessidade de amor e actua em consequência.
A actividade caritativa cristã também não deve ser um meio para conseguir conversões. O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. Isto não significa que esta acção deva deixar de lado a Deus e a Cristo. O cristão sabe quando deve falar de Deus e quando é justo não fazê-lo e deixar somente falar o amor.
Neste contexto, face ao perigo do secularismo que pode condicionar muitos cristãos na tarefa caritativa, é necessário reafirmar a importância da oração. O contacto vivo com Cristo evita que a experiência das enormes necessidades e dos próprios limites arrastem para uma ideologia que pretenda fazer aqui e agora aquilo que, aparentemente, Deus não consegue fazer, ou cair na tentação de ceder à inércia e à resignação. Quem reza não desperdiça o tempo, apesar de as circunstâncias o impelirem unicamente à acção, nem pretende mudar ou corrigir os planos de Deus, mas procura - seguindo o exemplo de Maria e dos santos - obter de Deus a luz e a força do amor que vence toda a obscuridade e egoísmo presentes no mundo.
O Papa glosa a encíclica
Bento XVI glosou em várias ocasiões o significado da encíclica Deus caritas est. As palavras que se seguem foram pronunciadas a 23 de Janeiro num discurso aos participantes num simpósio organizado pelo Conselho Pontifício "Cor Unum".
"Uma primeira leitura da encíclica poderia talvez dar a impressão de que se divide em duas partes pouco relacionadas entre si: uma primeira parte teórica, que fala da essência do amor, e uma segunda parte que trata da caridade eclesial, das organizações caritativas. No entanto, o que a mim me interessava era precisamente a unidade entre os dois temas, que só se compreendem bem se forem vistos como uma só coisa.
"Antes de mais nada, era necessário afrontar a essência do amor tal como se nos apresenta à luz do testemunho bíblico. Partindo da imagem cristã de Deus, era preciso mostrar que o homem está criado para amar e que este amor, que num primeiro momento se manifesta sobretudo como eros entre o homem e a mulher, tem que se transformar depois em agape, em dom de si ao outro, para responder precisamente à autêntica natureza do eros.
"Sobre esta base, teria que se esclarecer depois que a essência do amor de Deus e do próximo descrito na Bíblia é o centro da existência cristã, é fruto da fé. A seguir, era necessário sublinhar numa segunda parte que o acto totalmente pessoal do agape não pode ficar em algo meramente individual, mas pelo contrário tem que se tornar também um acto essencial da Igreja como comunidade.
"A organização eclesial da caridade não é uma forma de assistência social que se sobrepõe por casualidade à realidade da Igreja, uma iniciativa que poderia ser deixada a outros. Na realidade, essa acção faz parte da natureza da Igreja. Assim como o Logos divino tem a sua correspondência no anúncio humano, a palavra da fé, assim também ao Agape que é Deus tem que corresponder o agape da Igreja, a sua actividade caritativa. Esta actividade, além do seu primeiro significado concreto de ajuda ao próximo, contém essencialmente o de comunicar também aos outros o amor de Deus, que nós próprios recebemos. Em certo sentido, tem que tornar visível o Deus vivo. Na organização caritativa, Deus e Cristo não têm que ser palavras estranhas; na realidade, indicam o manancial originário da caridade eclesial. A força da Caritas depende da força da fé de todos os seus membros e colaboradores. O espectáculo do homem que sofre toca o nosso coração. Mas o empenho caritativo tem um sentido que vai para além da mera filantropia."
Aceprensa
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