Na solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, Bento XVI formula uma vigorosa invocação a Cristo
Bento XVI presidiu à Santa Missa no adro da Basílica de São João de Latrão, na tarde de quinta-feira, 11 de Junho, solenidade do Corpo e Sangue de Cristo. Na sua homilia, que publicamos a seguir, Bento XVI formulou uma vigorosa invocação a Cristo para que liberte o mundo do "veneno do mal, da violência e do ódio que polui as consciências e o purifique com o poder do amor misericordioso".
"Este é o meu corpo, este é o meu sangue"
Queridos irmãos e irmãs!
Estas palavras que Jesus pronunciou na Última Ceia, são repetidas todas as vezes que se renova o Sacrifício eucarístico. Ouvimo-las há pouco no Evangelho de Marcos e ressoam com singular poder evocativo hoje, solenidade do Corpus Christi. Elas conduzem-nos idealmente ao Cenáculo, fazem-nos reviver o clima espiritual daquela noite quando, celebrando a Páscoa com os seus, o Senhor antecipou no mistério o sacrifício que se teria consumado no dia seguinte na cruz. A instituição da Eucaristia parece-nos assim como que a antecipação e a aceitação por parte de Jesus da sua morte. Escreve a propósito Santo Efrém, o Sírio: durante a ceia Jesus imolou-se a si mesmo; na cruz Ele foi imolado pelos outros (cf. Hino sobre a crucifixão, 3, 1).
"Este é o meu sangue". É aqui evidente a referência à linguagem sacrifical de Israel. Jesus apresenta-se a si mesmo como o sacrifício verdadeiro e definitivo, no qual se realiza a expiação dos pecados que, nos ritos do Antigo Testamento, nunca tinha sido totalmente cumprido. A esta expressão seguem-se outras duas muito significativas. Antes de tudo, Jesus Cristo diz que o seu sangue "é derramado por muitos" com uma referência compreensível aos cânticos do Servo de Deus, que se encontram no livro de Isaías (cf. cap. 53). Com o acréscimo "sangue da aliança" Jesus faz ainda sobressair que, graças à sua morte, se realiza a profecia da nova aliança fundada na fidelidade e no amor infinito do Filho que se fez homem, por isso uma aliança mais forte que todos os pecados da humanidade. A antiga aliança tinha sido sancionada no Sinai com um rito sacrifical de animais, como ouvimos na primeira leitura, e o povo eleito, libertado da escravidão do Egipto, tinha prometido cumprir todos os mandamentos dados pelo Senhor (cf. Êx 24, 3).
Na verdade, Israel imediatamente, com a construção do bezerro de ouro, mostrou-se incapaz de se manter fiel a esta promessa e assim, ao pacto estabelecido, que aliás em seguida transgrediu com muita frequência, adaptando ao seu coração de pedra a Lei que lhe deveria ter ensinado o caminho da vida. Mas o Senhor não faltou à sua promessa e, através dos profetas, preocupou-se por recordar a dimensão interior da aliança, e anunciou que teria escrito uma nova nos corações dos seus fiéis (cf. Jr 31, 33), transformando-os com o dom do Espírito (cf. Ez 36, 25-27). E foi durante a Última Ceia que estabeleceu com os discípulos e com a humanidade esta nova aliança, confirmando-a não com sacrifícios de animais como acontecia no passado, mas com o seu sangue, que se tornou "sangue da nova aliança". Portanto, fundou-a na própria obediência que, como eu disse, é mais forte que todos os nossos pecados.
Isto é bem evidenciado na segunda leitura, tirada da Carta aos Hebreus, na qual o autor sagrado declara que Jesus é "mediador de uma aliança nova" (9, 15). Tornou-se mediador graças ao seu sangue ou, mais exactamente, graças ao dom de si mesmo, que dá pleno valor ao derramamento do seu sangue. Na cruz, Jesus é ao mesmo tempo vítima e sacerdote: vítima digna de Deus porque é sem mancha, e sumo sacerdote que se oferece a si mesmo, sob o impulso do Espírito Santo, e intercede pela humanidade inteira. A Cruz é por conseguinte mistério de amor e de salvação, que nos purifica como diz a Carta aos Hebreus das "obras mortas", isto é, dos pecados, e nos santifica esculpindo a aliança nova no nosso coração; a Eucaristia, renovando o sacrifício da Cruz, torna-nos capazes de viver fielmente a comunhão com Deus.
Queridos irmãos e irmãs que saúdo todos com afecto começando pelo Cardeal Vigário e pelos outros Cardeais e Bispos presentes como o povo eleito reunido na assembleia do Sinai, também nós esta tarde queremos reafirmar a nossa fidelidade ao Senhor. Há alguns dias, na abertura do congresso diocesano anual, ressaltei a importância de permanecer, como Igreja, à escuta da Palavra de Deus na oração e perscrutar as Escrituras, sobretudo com a prática da lectio divina, da leitura meditada e adorante da Bíblia. Sei que muitas iniciativas foram promovidas a este propósito nas paróquias, nos seminários, nas comunidades religiosas, no âmbito das confrarias, das associações e dos movimentos apostólicos, que enriquecem a nossa comunidade diocesana. Aos membros destes numerosos organismos eclesiais dirijo a minha saudação fraterna. A vossa numerosa presença nesta celebração, queridos amigos, ressalta que a nossa comunidade, caracterizada por uma pluralidade de culturas e de experiências diversas, é plasmada por Deus como "seu" povo, como o único Corpo de Cristo, graças à nossa sincera participação na dúplice mesa da Palavra e da Eucaristia. Alimentados de Cristo, nós, seus discípulos, recebemos a missão de ser "a alma" desta nossa cidade (cf. Carta a Diogneto, 6, ed Funk, i, p. 400; veja também lg, 38) fermento de renovação, pão "partido" para todos, sobretudo para quantos se encontram em situações de mal-estar, de pobreza e de sofrimento físico e espiritual. Tornemo-nos testemunhas do seu amor. Dirijo-me particularmente a vós, queridos sacerdotes, que Cristo escolheu para que juntamente com Ele possais viver a vossa vida como sacrifício de louvor para a salvação do mundo. Só da união com Jesus podeis tirar aquela fecundidade espiritual que é geradora de esperança no vosso ministério pastoral. São Leão Magno recorda que "a nossa participação no corpo e no sangue de Cristo não tende para se tornar senão o que recebemos" (Sermo 12, De Passione 3, 7, pl 54). Se isto é verdadeiro para cada cristão, com mais razão o é para nós sacerdotes. Tornar-se Eucaristia! Seja precisamente este o nosso constante desejo e compromisso, para que a oferta do corpo e do sangue do Senhor que fazemos no altar, seja acompanhada pelo sacrifício da nossa existência.
Todos os dias, haurimos do Corpo e Sangue do Senhor aquele amor livre e puro que nos torna ministros dignos de Cristo e testemunhas da sua alegria. É quanto os fiéis esperam do sacerdote: isto é, o exemplo de uma autêntica devoção à Eucaristia; gostam de o ver transcorrer longas pausas de silêncio e de adoração diante de Jesus como fazia o santo Cura d'Ars, que recordaremos de modo particular durante o já eminente Ano Sacerdotal.
São João Maria Vianney gostava de dizer aos seus paroquianos: "Vinde à comunhão... É verdade que não sois dignos dela, mas dela tendes necessidade" (Bernard Nodet, Le curé d'Ars. Sa pensée Son coeur, ed. Xavier Mappus, Paris 1995, p. 119). Conscientes de sermos inadequados por causa dos pecados, mas com a necessidade de nos alimentarmos do amor que o Senhor nos oferece no sacramento eucarístico, renovemos esta tarde a nossa fé na real presença de Cristo na Eucaristia. Não se deve dar por certa esta fé! Hoje corre-se o risco de uma secularização rastejante também no interior da Igreja, que se pode traduzir num culto eucarístico formal e vazio, em celebrações sem aquela participação do coração que se expressa em veneração e respeito pela liturgia. É sempre forte a tentação de reduzir a oração a momentos superficiais e apressados, deixando-se subjugar pelas actividades e preocupações terrenas. Quando daqui a pouco repetirmos o Pai-Nosso, a oração por excelência, diremos: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje", pensando naturalmente no pão de todos os dias. Mas este pedido contém algo mais profundo. A palavra grega epioúsios, que traduzimos com "quotidiano", poderia aludir também ao pão "sobre-substancial", ao pão "do mundo futuro". Alguns Padres da Igreja viram aqui uma referência à Eucaristia, o pão da vida eterna do mundo novo, que nos é dado já hoje na Santa Missa, para que desde agora o mundo futuro tenha início em nós. Portanto, com a Eucaristia o céu vem à terra, o amanhã de Deus desce ao presente e o tempo é como que abraçado pela eternidade divina.
Amados irmãos e irmãs, como todos os anos, no final da Santa Missa, terá lugar a tradicional procissão eucarística e elevaremos, com as orações e os cânticos, uma coral imploração ao Senhor presente na hóstia consagrada. Dir-lhe-emos em nome de toda a Cidade: permanece connosco, Jesus, doa-te a nós e dá-nos o pão que nos alimenta para a vida eterna! Liberta este mundo do veneno do mal, da violência e do ódio que polui as consciências, purifica-o com o poder do teu amor misericordioso. E tu, Maria, que foste mulher "eucarística" durante toda a tua vida, ajuda-nos a caminhar unidos rumo à meta celeste, alimentados pelo Corpo e Sangue de Cristo, pão de vida eterna e fármaco da imortalidade divina. Amém!
Sem comentários:
Enviar um comentário