Acabaram-se as minhas férias no
Reino Unido, durante as quais assisti a aulas muito interessantes sobre a
história da Igreja naquele país. Aprendi imenso.
Os historiadores ingleses não
escondem alguma página triste, como a perseguição aos católicos (ainda não
completamente abolida em certos aspectos práticos), no entanto, o balanço é
extraordinário, até na lucidez com que este povo olha o seu passado.
Um ponto alto da história
britânica é a participação política. A democracia foi arraigando e no século
XVIII já era uma conquista civilizacional razoavelmente consolidada.
Outra das glórias do país é a
abolição da escravatura moderna. A escravatura já desaparecera na Europa nos primeiros
séculos do cristianismo e assim continuou durante toda a Idade Média, mas depois,
com os descobrimentos marítimos, voltou. Reagiram os Papas, alguma gente de bom
coração esforçou-se por libertar os escravos e proporcionar-lhes melhores
condições mas, apesar de pequenos êxitos, os interesses económicos prevaleceram
e a Europa voltou a praticar a escravatura. Foi em Inglaterra, no final do
século XVIII, que a situação se alterou, sobretudo graças a William Pitt e a William
Wilberforce (lembram-se do filme «Amazing Grace»?).
William Pitt |
William Pitt, considerado o
melhor Primeiro-Ministro inglês, chegou ao cargo com 24 anos de experiência,
ou, para o dizer de forma mais clara, foi Primeiro-Ministro com 24 anos de
idade. Dizia-se que «would not last out the Christmas season» (não ia chegar ao
Natal), mas sobreviveu 17 anos, com vários êxitos eleitorais retumbantes. Pitt
ficou na história pelo sucesso económico e social, pela «revolução» na política
monetária, por vitórias militares (como a batalha de Trafalgar, que aniquilou a
armada napoleónica, desejosa de invadir a Grã-Bretanha). Sobretudo, Pitt ficou
conhecido pela sua integridade pessoal e pelas causas cívicas em que se
empenhou, principalmente a abolição da escravatura, conseguida ao fim de duas décadas
e meia de esforço conjunto com o seu amigo William Wilberforce.
Maynooth University |
Outro objectivo de William Pitt
era mitigar a perseguição aos católicos, mas o rei Jorge III opôs-se, com o
argumento de que isso iria contra o juramento que fizera ao tomar posse como
rei. Em consequência, Pitt demitiu-se. Entretanto, já tinha conseguido que o
espírito prático dos ingleses aceitasse algumas mudanças. Por exemplo,
convenceu-os de que era melhor os padres católicos serem formados no seu país
do que terem de ir estudar para o estrangeiro, nomeadamente para França,
expostos às loucuras ideológicas da Revolução Francesa. Com esse argumento de
sentido prático, conseguiu que um rei ferreamente anticatólico fundasse e
financiasse a Maynooth University, em 1795, uma universidade católica!
William Wilberforce |
O grande colaborador de Pitt, William
Wilberforce, homem de profunda religiosidade, também tinha simpatia pelos
católicos. Tentou, sem êxito, que o catolicismo fosse aceite e que os católicos
pudessem ser funcionários públicos e até ser eleitos para o Parlamento. Grande
parte da família Wilberforce converteu-se ao catolicismo durante o século XIX e
isso teve grande eco, porque eram personalidades de grande craveira e muito
estimadas.
Outro exemplo do espírito
prático dos ingleses é a forma como promoveram a escolaridade. Em vez de criarem
escolas estatais, apoiaram as boas escolas. Foi deste modo que as escolas
católicas floresceram com o apoio do Estado, porque tinham prestígio académico
e eram preferidas por muitas famílias, apesar de o número de católicos na época
ser ínfimo. Esta política fez com que a taxa de alfabetização chegasse a 100%
no Reino Unido, um século antes de alcançar 10% em Portugal e em muitos outros
países do mundo.
Ainda hoje, quando os ingleses
falam de «escola pública» referem-se a qualquer escola, porque são todas
apoiadas pelo Estado, a começar pelas católicas. Quando lhes explico que em
Portugal «escola pública» significa «escola estatal», eles abrem a boca de
espanto: vocês deixam que os funcionários públicos fiquem com o vosso dinheiro
e decidam a educação dos vossos filhos?
Há coisas que ultrapassam a
capacidade de compreensão dos ingleses.
José Maria C. S. André
«Correio dos Açores», «Verdadeiro Olhar», 14-IX-2014
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