Em 1986 Álvaro del Portillo aterrou em Lisboa para uma curta estada. Era então o prelado do Opus Dei. Os responsáveis do aeroporto levaram-no à sala VIP, mas estava ocupada pelo... secretário-geral do PCP. Apesar da surpresa, Álvaro Cunhal consentiu amavelmente em dar também lugar ao recém-chegado. Quando no final se cruzaram, Álvaro del Portillo estendeu a mão, agradeceu a gentileza e disse: "Sei que é o secretário do Partido Comunista Português; eu sou o prelado do Opus Dei. Também me chamo Álvaro."
O encontro foi brevíssimo, fortuito, sem mais transcendência. Se o trago aqui é porque me serve de pretexto e me parece um símbolo. Serve-me de pretexto, para assinalar que o Papa Francisco decidiu beatificar esse homem afável e sorridente que foi Álvaro del Portillo, numa cerimónia que vai acontecer neste sábado. Também eu o conheci assim: simpático e sereno. Com todos: quer tivesse pela frente o cauteleiro, o líder comunista ou o maior amigo. Tanto nos bairros da periferia de Madrid onde em jovem passava tantos dias, como mais tarde ao lançar iniciativas sociais em África.
Ao mesmo tempo, esse encontro entre dois Álvaros é um sinal: o sinal de duas grandes visões que estão presentes no mundo contemporâneo.
Marx estava muito convencido do que dizia quando escreveu: o homem é para o homem o ser supremo. Não há ninguém acima dele. Destronámos Deus. E Deus - como muitas vezes na história - deixou. As rédeas do mundo passaram para as mãos dos homens. E temos assistido às consequências. Contudo, já alguém disse, com razão, que colocar-se no lugar de Deus, sem ser Deus, é a mais tola arrogância, é a mais perigosa aventura.
Outra visão é a que herdámos do povo judeu e se conserva na oração fundamental de Israel: "Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor!"
Estamos tão habituados a considerar que só os problemas diários são problemas reais, e tão desabituados de valorizar o fator Deus, que podemos não sentir a diferença abissal entre uma visão e a outra.
Álvaro del Portillo era crente, mas não no sentido de admitir que Deus existe, sim, mas lá longe, indiferente e entretido com muitas outras coisas. Ele incorporou em si a grande intuição do cristianismo: que Deus - além das coisas "óbvias" de ser criador, poderoso, bondoso, providente, juiz - nos pediu amizade. Não só a uns eleitos. A todos. Essa amizade inclui, da parte dele, ter feito seus os nossos sofrimentos.
Não por ser um Deus que tenha um gosto especial por sofrer, mas por ter um jeito especial para amar. Tal como fazem os pais, que seguem cada minuto dos filhos, e gostariam de ser todo-poderosos para os ajudar. Nisso Deus leva vantagem. Paradoxalmente, este Deus paternal é aquele que alguns pretendem expulsar da realidade como se Deus fosse uma ameaça.
Álvaro del Portillo viveu com Deus muito perto, envolveu Deus no trabalho, atravessou as complicações na vida, não com a segurança de quem tem um Deus às ordens para afastar todas as dificuldades, mas como quem confia que - mesmo quando as coisas correm inapelavelmente mal - Deus é Pai e lá sabe o que faz.
Álvaro del Portillo se fosse vivo teria 100 anos. No dia em que morreu, João Paulo II foi velar o seu corpo.
Pedro Gil in Diário de Notícias
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