O prazer espiritual de ser povo
268. A Palavra de Deus convida-nos também a reconhecer que somos povo: «Vós que outrora não éreis um povo, agora sois povo de Deus» (1 Pd 2, 10). Para ser evangelizadores com espírito é preciso também desenvolver o prazer espiritual de estar próximo da vida das pessoas, até chegar a descobrir que isto se torna fonte duma alegria superior. A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente uma paixão pelo seu povo. Quando paramos diante de Jesus crucificado, reconhecemos todo o seu amor que nos dignifica e sustenta, mas lá também, se não formos cegos, começamos a perceber que este olhar de Jesus se alonga e dirige, cheio de afecto e ardor, a todo o seu povo. Lá descobrimos novamente que Ele quer servir-Se de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado. Toma-nos do meio do povo e envia-nos ao povo, de tal modo que a nossa identidade não se compreende sem esta pertença.
269. O próprio Jesus é o modelo desta opção evangelizadora que nos introduz no coração do povo. Como nos faz bem vê-Lo perto de todos! Se falava com alguém, fitava os seus olhos com uma profunda solicitude cheia de amor: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Vemo-Lo disponível ao encontro, quando manda aproximar-se o cego do caminho (cf. Mc 10, 46-52) e quando come e bebe com os pecadores (cf. Mc 2, 16), sem Se importar que O chamem de glutão e beberrão (cf. Mt 11, 19). Vemo-Lo disponível, quando deixa uma prostituta ungir-Lhe os pés (cf. Lc 7, 36-50) ou quando recebe, de noite, Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21). A entrega de Jesus na cruz é apenas o culminar deste estilo que marcou toda a sua vida. Fascinados por este modelo, queremos inserir-nos a fundo na sociedade, partilhamos a vida com todos, ouvimos as suas preocupações, colaboramos material e espiritualmente nas suas necessidades, alegramo-nos com os que estão alegres, choramos com os que choram e comprometemo-nos na construção de um mundo novo, lado a lado com os outros. Mas não por obrigação, nem como um peso que nos desgasta, mas como uma opção pessoal que nos enche de alegria e nos dá uma identidade.
270. Às vezes sentimos a tentação de ser cristãos, mantendo uma prudente distância das chagas do Senhor. Mas Jesus quer que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros. Espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente e vivemos a intensa experiência de ser povo, a experiência de pertencer a um povo.
271. É verdade que, na nossa relação com o mundo, somos convidados a dar razão da nossa esperança, mas não como inimigos que apontam o dedo e condenam. A advertência é muito clara: fazei-o «com mansidão e respeito» (1 Pd 3, 16) e «tanto quanto for possível e de vós dependa, vivei em paz com todos os homens» (Rm 12, 18). E somos incentivados também a vencer «o mal com o bem» (Rm 12, 21), sem nos cansarmos de «fazer o bem» (Gal 6, 9) e sem pretendermos aparecer como superiores, antes «considerai os outros superiores a vós próprios» (Fl 2, 3). Na realidade, os Apóstolos do Senhor «tinham a simpatia de todo o povo» (Act 2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13). Está claro que Jesus não nos quer como príncipes que olham desdenhosamente, mas como homens e mulheres do povo. Esta não é a opinião de um Papa, nem uma opção pastoral entre várias possíveis; são indicações da Palavra de Deus tão claras, directas e contundentes, que não precisam de interpretações que as despojariam da sua força interpeladora. Vivamo-las sine glossa, sem comentários. Assim, experimentaremos a alegria missionária de partilhar a vida com o povo fiel de Deus, procurando acender o fogo no coração do mundo.
272. O amor às pessoas é uma força espiritual que favorece o encontro em plenitude com Deus, a ponto de se dizer, de quem não ama o irmão, que «está nas trevas e nas trevas caminha» (1 Jo 2, 11), «permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus» (1 Jo 4, 8). Bento XVI disse que «fechar os olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus», e que o amor é fundamentalmente a única luz que «ilumina incessantemente um mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir». Portanto, quando vivemos a mística de nos aproximar dos outros com a intenção de procurar o seu bem, ampliamos o nosso interior para receber os mais belos dons do Senhor. Cada vez que nos encontramos com um ser humano no amor, ficamos capazes de descobrir algo de novo sobre Deus. Cada vez que os nossos olhos se abrem para reconhecer o outro, ilumina-se mais a nossa fé para reconhecer a Deus. Em consequência disto, se queremos crescer na vida espiritual, não podemos renunciar a ser missionários. A tarefa da evangelização enriquece a mente e o coração, abre-nos horizontes espirituais, torna-nos mais sensíveis para reconhecer a acção do Espírito, faz-nos sair dos nossos esquemas espirituais limitados. Ao mesmo tempo, um missionário plenamente devotado ao seu trabalho experimenta o prazer de ser um manancial que transborda e refresca os outros. Só pode ser missionário quem se sente bem procurando o bem do próximo, desejando a felicidade dos outros. Esta abertura do coração é fonte de felicidade, porque «a felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20, 35). Não se vive melhor fugindo dos outros, escondendo-se, negando-se a partilhar, resistindo a dar, fechando-se na comodidade. Isto não é senão um lento suicídio.
273. A missão no coração do povo não é uma parte da minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado; não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida. É algo que não posso arrancar do meu ser, se não me quero destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou neste mundo. É preciso considerarmo-nos como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar. Nisto se revela a enfermeira autêntica , o professor autêntico, o político autêntico, aqueles que decidiram, no mais íntimo do seu ser, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências. Deixará de ser povo.
274. Para partilhar a vida com a gente e dar-nos generosamente, precisamos de reconhecer também que cada pessoa é digna da nossa dedicação. E não pelo seu aspecto físico, suas capacidades, sua linguagem, sua mentalidade ou pelas satisfações que nos pode dar, mas porque é obra de Deus, criatura sua. Ele criou-a à sua imagem, e reflecte algo da sua glória. Cada ser humano é objecto da ternura infinita do Senhor, e Ele mesmo habita na sua vida. Na cruz, Jesus Cristo deu o seu sangue precioso por essa pessoa. Independentemente da aparência, cada um é imensamente sagrado e merece o nosso afecto e a nossa dedicação. Por isso, se consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!
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