Esta crise inverteu o efeito relativo dos mecanismos comunitários. Portugal mudou e é daí que sairá a resposta aos nossos males, apesar de não darmos por isso.
Nas décadas de facilidade e endividamento aprendemos que os nossos problemas se resolviam através de duas formas principais: política e economia. Os meios válidos para o sucesso social eram o poder ou o dinheiro. O resto não interessava. Ora foi precisamente aí que a crise bateu, com défice orçamental e recessão produtiva a paralisar os sistemas político-económicos. Hoje a maioria das pessoas vira-se para aqueles lados que o dirigismo e materialismo das últimas décadas descuraram ou agrediram: família e Igreja.
Com Estado e economia manifestando incompetência, as pessoas aflitas regressam às redes informais. O papel dos institutos e mercados é indiscutível, mas se não fossem os parentes e as paróquias muita gente estaria perdida. Isto é irónico, pois as análises e políticas continuam a seguir a linha tradicional, esforçando-se por desacreditar esses velhos laços e substituí-los por métodos modernos e técnicos, em repartições públicas e relações comerciais. Pior, as agressivas medidas laicistas e anti-família lançam ataque feroz contra essas formas sociais básicas. Totalitarismo assistencial e promoção do aborto e divórcio permanecem virulentos. Apesar de todos os esforços, família e Igreja sobrevivem e com elas contamos nesta terrível crise do Estado e economia. São mesmo a única hipótese em certos traços da crise, que os mecanismos oficiais descuram.
Aquilo que mais aflige as análises comuns é a terrível sorte dos mais pobres. Mas não são os pobres os mais afectados pela crise, como se vê bem em alguns indicadores esquecidos. As taxas de desemprego das pessoas sem graus de escolaridade ou com o primário continuam abaixo das do terceiro ciclo e secundário, os quais são quase metade dos desempregados. Mesmo as medidas de austeridade vêm com uma ressalva para os rendimentos inferiores. O peso da crise está pois a cair na classe média. Muitos que tinham certa prosperidade estão agora a apertar o cinto, ou mesmo a cair na pobreza. Aliás são esses que protestam: funcionários, professores e outros profissionais dominam a contestação ao governo.
É importante notar que este facto não reduz, antes aumenta o sofrimento. A pobreza é sempre dramática, mas a pior vem quando a queda na miséria se faz a partir do conforto. O embate, surpresa, desajustamento são muito maiores, precisamente porque essas pessoas nunca conheceram a privação. Em geral domina a vergonha e o desespero. Não só ignoram os apoios disponíveis, mas os próprios mecanismos de assistência identificam ou lidam mal com casos que surgem de lados inesperados. Esta nova e inesperada pobreza é muito mais grave que a endémica, precisamente por ser inusitada. Estado e empresas têm dificuldade em reagir. Só os próximos acodem.
D. José Policarpo disse-o há dias: "Penso que houve uma coisa muito bonita desta crise que estamos a viver que foi que a participação da Igreja não foi de palavras, foi de obras. E graças a Deus com uma grande resposta. Desafiámos os nossos cristãos a estar atentos ao seu próximo, ao seu vizinho e a agir. Em vez de estar a tomar posições solenes de condenação de soluções governativas, olhar o que as pessoas estão a viver... é isso que é a nossa missão. Esta foi uma opção muito simples de realismo da caridade cristã." (Rádio Renascença, 4/Out.)
O grande valor destas declarações está numa forma totalmente diferente de olhar a situação nacional. Uma sociedade saudável precisa de equilíbrio entre família, economia, Estado e Igreja. A crise nasceu do desequilíbrio e mesmo hoje a generalidade das análises continua a assumir uma solução político-económica, mesmo quando a crise mostra a fragilidade desses mecanismos. Reduzimos a eles a nossa opinião, acusando credores e políticos e acreditando que basta mudar ministros ou leis e tudo volta a funcionar. Mas a solução mais próxima é normalmente a mais eficaz.
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