Nas últimas semanas o País foi invadido pela foto de um cadáver nu de uma mulher horrivelmente espancada. Em revistas, outdoors, até no exterior de autocarros todo o Portugal foi confrontado com esta imagem de terrível violência. Quem terá feito tal barbaridade à pobre senhora? Não só os golpes mas a suprema infâmia de ser exposta desta forma inqualificável?
Aquela infeliz deve ter tido uma vida difícil, sofreu morte horrível, mas nem depois de morta conseguiu o respeito mínimo devido ao ser humano, sendo vergonhosamente explorada. Com a cara visível, identificável por conhecidos, a desgraçada sofreu uma das sortes mais lastimáveis. Até nos filmes violentos os cadáveres costumam ser tapados, filmados lateralmente, ao menos com a cara coberta. Aqui a obscenidade e degradação não conheceram limites, nem sequer na divulgação. Em todo o lado e circunstância, todo o País, incluindo crianças e pessoas impressionáveis, é forçado a contemplar esta imagem sumamente repulsiva.
Quem foi o monstro terrorista capaz de baixeza tão extrema? Apenas um tipo de pessoa chega a tais limites: quem se sente impelido por um fim sublime. Como o radicalismo religioso e o político mostram a cada passo, é quando os propósitos são mais nobres que os meios vêm mais descurados. Se por vingança alguém enchesse o País com imagens do corpo sangrento de Ben Laden ou Kadhafi seria imediatamente repudiado. Esta barbaridade, muito pior pela inocência da vítima, resiste à censura graças à elevação da apregoada finalidade. Aspirando ao melhor cometem-se as maiores atrocidades.
O cartaz não esconde a proveniência. Trata-se de uma campanha da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, instituição governamental alegadamente orientada para a promoção das virtudes cívicas e sociais. Que evidentemente precisa de lições básicas sobre direitos humanos elementares; não apenas do objecto mas também dos alvos das suas campanhas. Diz combater a violência doméstica cometendo violência visual pública e generalizada.
Afirmamos viver na sociedade mediática, mas estamos na época primitiva da era da informação. As gerações futuras vão considerar-nos o período troglodita da civilização digital. Perante a enxurrada incontrolável de imagens, mensagens e estímulos, o pobre cidadão fica indefeso nestes tempos de selvajaria visual. Uma forma garantida de captar a atenção é subir a intensidade do choque ao intolerável. Assim nasceu a publicidade degradante, popularizada pela Benetton e usada em muitos campos. Para vender camisolas, defender vítimas ou qualquer outro fim, vários acham-se com direito de agredir os cidadãos com imagens brutais.
O truque é infalível, porque a perturbação nas vítimas suscita indignação e conversas, que representam publicidade gratuita para o promotor. Afinal este texto que está a ler divulga a campanha da Comissão. A prática está interditada pelo Código da Publicidade: "É proibida a publicidade que (...) c) atente contra a dignidade da pessoa humana; (...) f) utilize linguagem obscena" (DL n.º 330/90 art 7.º n.º 1). Mas, como sempre, os grandes crimes ficam mais impunes que os pequenos. Numa sociedade hipócrita, apática, ainda com remorsos de antigas cen- suras, a selvajaria mediática costuma escapar.
Pior de tudo, a referida publicidade pode agravar seriamente o problema que diz abordar. Porque os assassinos de familares à pancada são evidentemente desequilibrados. Qual o efeito destas imagens obsessivas nessas mentes doentes? Que impacto tem este paroxismo de violência visual nas vidas das infelizes vítimas? Um dos dogmas desta infantil sociedade mediática é que se deve sempre denunciar o mal, ventilar problemas, debater publicamente todas as questões, uma supina ingenuidade, que se torna cruel em certos casos.
Não é evidente a utilidade pública da referida Comissão, se julga resolver problemas desviando para campanhas destas o dinheiro que deveria ir para a polícia. Mas ao menos nomeiem-se dirigentes que respeitem as regras elementares da sociedade civilizada.
João César das Neves in DN online
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