Os que tiveram ocasião de se relacionar com o Cardeal Ratzinger coincidem em que é um homem muito diferente de como "o pintam". Juntam-se testemunhos de alguns jornalistas que o entrevistaram ou de pessoas que trabalharam com ele.
Peter Seewald, o jornalista alemão que publicou dois livros de entrevistas com o cardeal Ratzinger, fez umas declarações ao Passauer Neue Presse (15.04.2005), quatro dias antes da eleição do Papa.
Perante os que chamaram a Ratzinger o Panzerkardinal ("cardeal blindado"), Seewald comenta que "a sua personalidade é uma das mais desconhecidas do nosso tempo. Porquê? Muita gente gosta de usá-lo como bode expiatório. É um fenómeno psicológico. Tudo o que na Igreja se torna incómodo, e pelo mero facto de ser incómodo, atira-se para cima de Ratzinger. Por trás disso esconde-se um certo comodismo. Mas a sua biografia não dá pé a tais juízos: pelo contrário, está cheia de lutas contra as ideologias e contra uma mentalidade fechada. É significativo que sempre se tenha posto do lado dos fracos. O seu dogma é "deixar a Igreja nas aldeias". Uma das citações que prefiro dele é: "A Igreja necessita de uma revolução de fé. Não pode misturar-se com o espírito mundano. Tem que desprender-se das suas propriedades para conservar o seu património".
Quanto ao carácter, Seewald adverte: "Não esqueçamos que o Cardeal é decerto alemão, mas de origem absolutamente bávara, inclusive, um patriota bávaro. Tudo o que é prussiano é-lhe estranho. Tem um coração bávaro e está totalmente integrado na cultura ocidental da sua pátria, com a liberalidade característica da Baviera".
"O pensamento de Ratzinger tem uma grande influência dos Padres da Igreja. É-me fácil pensar que com ele como Papa voltaria um tempo de patrística: não só dos Padres da Igreja, mas também dos Padres Conciliares do Vaticano II, em que tomou parte, primeiro como conselheiro do Cardeal Frings e depois como teólogo oficial do Concílio. Acabado este, a variedade de correntes do Concílio seguiu numa direcção que ninguém tinha previsto originalmente. Também aqui Ratzinger poderia levar as coisas ao seu cume. É o que, precisamente com palavras do Concílio, poderia chamar-se usar "os remédios da misericórdia".
O Pontífice que sacrificou a sua vocação
O escritor italiano Vittorio Messori, autor do livro-entrevista com Ratzinger Diálogos sobre a fé, escreve no Corriere delle Sera (20.04.2005) as suas recordações do verão de 1984: "Havia menos de três anos que o Cardeal bávaro tinha sido nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por João Paulo II. Ratzinger interessava-me muito. A fé e a ortodoxia pareciam estar em perigo devido à tribulação pós-conciliar da Igreja; mas, no início dessa tempestade, ele, jovem teólogo, tinha tido um papel como consultor da ala progressista do episcopado alemão. Os Ratzinger, Küng, Schillebeeckx e outros teólogos alemães, holandeses e franceses tinham fundado a Conclilium, a revista mais radical da contestação, porque era a mais 'científica', feita não só de slogans mas de estudos profundos".
"E no entanto, uns anos depois, Ratzinger não só é Cardeal como inclusive se sentava no palácio romano que tinha sido dos Grandes Inquisidores. ‘Não fui eu que mudei, foram eles', respondeu-me quando, entre as primeiras perguntas que lhe fiz, indagava sobre esta reconversão à tradição. Queria dizer que tinha dado conta de que aquela teologia que tinha compartilhado, mais do que aprofundar na fé, pregava a ruptura, a descontinuidade e apresentava o Vaticano II não como o Concílio Ecuménico nº 21 da Igreja, mas como um novo início que exigia tábua rasa".
Das conversas com Ratzinger, Messori destaca: "O Ratzinger real, não o do mito, é um dos homens mais simples, compreensivos, cordiais e, até tímidos, que conheci". "Era decerto um homem austero, duma austeridade especial que reservava para si mesmo e não queria para os outros".
"Seria necessário interrogar-se acerca do que resta da lenda do inquisidor, fazendo o balanço dos seus 24 anos como prefeito da Fé para descobrir que a medida mais grave adoptada contra um teólogo da libertação (ocasionando uma vaga de críticas) foi o convite para um café no seu gabinete feito a Leonardo Boff, e a determinação de que interrompesse, durante um ano, a enxurrada de entrevistas, declarações e manifestações que estava a fazer. (...) Na realidade, por amor à Igreja, Joseph Ratzinger fez o maior dos sacrifícios: renunciar à sua autêntica vocação de estudioso da Teologia e de professor. Sempre lhe custou ter de chamar à atenção os seus colegas".
Trabalhar com o Prefeito
Alejandro Cifres, que trabalhou com o cardeal Ratzinger como director do arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé, transmite a sua experiência no ABC (21.04.2005):
"Ratzinger é o homem que muitos etiquetaram injustamente de inquisidor, dogmático e fechado ao diálogo, de extremamente conservador. Eu tive o privilégio de trabalhar com ele quase 14 anos, metade do pesado pontificado, e por isso posso testemunhar que nenhum desses clichés se adequa à pessoa. (...) Durante quase 25 anos serviu e trabalhou com humildade no lugar que lhe tinha sido atribuído, sem exigir nunca nada para si, pobremente, sem levar vida de príncipe da Igreja, sem luxos nem companhias além da da sua querida irmã até que o Senhor a levou; desde então viveu praticamente sozinho, com um serviço mínimo, num apartamento emprestado, só com a assistência dos seus secretários, que de manhã o ajudavam na Congregação e à tarde no seu infatigável estudo. O cardeal Ratzinger foi o prefeito que ensinou a toda a gente o que é trabalhar, cumprir um horário, levantar-se cedo e deitar-se tarde para não deixar pendente nenhum dos graves assuntos que o Papa e a Igreja lhe punham nas mãos. (...)
"Os que o conhecemos sabemos quantas vezes tinha pedido a João Paulo II que lhe permitisse abandonar o seu posto, que o deixasse regressar à Floresta Negra para poder escrever teologia enquanto as forças lho permitissem. E todos sabemos quantas vezes renunciou ao direito de se reformar por ser fiel àquele que nele tinha posto toda a sua confiança, em definitiva, para servir o Vigário de Cristo e a Igreja".
O último presente de João Paulo II
Num artigo publicado no International Herald Tribune (21.04.2005), o teólogo americano Michael Novak garante que "a eleição do cardeal Ratzinger como Papa foi o último presente de João Paulo II à Igreja Católica. Nenhum outro cardeal foi tão próximo de João Paulo II ou falou com ele mais demoradamente". Para Novak, que teve ocasião de falar várias vezes com Ratzinger, a caricatura de homem "autoritário" que se lhe aplicou, é infundada. "O novo Papa não será um clone do anterior. É mais reservado, mais tranquilo". "Foi elogiado pela sua cordial abertura por parte de protestantes e judeus, com quem manteve diálogos intelectuais". "O mundo vai descobrir depressa o verdadeiro homem escondido por trás desses estereótipos", vaticina Novak, que recorda ter sido Ratzinger "um dos eclesiásticos dos tempos recentes mais aberto aos jornalistas".
Também o mundo político italiano olha com interesse para Bento XVI. Piero Fassino, líder dos Democratas de Esquerda, partido preponderante da esquerda italiana, herdeiro do velho PCI, define-o como uma pessoa "de grande calibre teológico e profunda espiritualidade. Um grande intelectual europeu". Em entrevista publicada pelo Corriere della Sera (21.04.2005), Fassino afirma que o novo Papa "é um homem que me interessa. Aquilo que diz e escreve, mesmo que não se compartilhe, é duma intensidade ética e cultural extraordinária. E capta um ponto que todos advertem hoje: o mundo não pode viver sem uma escala de princípios e valores éticos". Conclui, em última análise, que Bento XVI, tal como João Paulo II, será um protagonista do nosso tempo".
In Aceprensa, nº 49/05, versão impressa
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