Podem-se já encontrar na Internet os primeiros documentos, dos mais de 6.000 redigidos pelo que seria o Papa Pio XII durante o período em que ocupou a nunciatura na Alemanha, numa época em que presenciou o desenrolar dos acontecimentos desde o fim do império até à ascensão do nazismo. Um simpósio internacional celebrado em Münster forneceu-nos uma visão de conjunto sobre a edição online da correspondência da Nunciatura e sobre questões da investigação com ela relacionadas.
Münster. No debate público à volta de Pio XII e do seu suposto "silêncio" face ao Holocausto, reivindica-se de modo recorrente a abertura do Arquivo Secreto do Vaticano, exigência que comporta a acusação implícita de que o Vaticano alguma coisa oculta. Esta crítica será silenciada o mais tardar quando estiver à disposição dos estudiosos o apartado do Arquivo referente ao pontificado de Pio XII (1939-1948). Inquirido pelo diário italiano Il Messagero, o prefeito do Arquivo Secreto do Vaticano Sergio Pagano declarou no passado mês de Janeiro que as "condições técnicas" se verificarão em 2014 ou 2015.
Os investigadores ocupam-se entretanto com o exame da documentação referente ao pontificado do seu antecessor, o Papa Pio XI (1922-1939), aberta em 2003 e 2006. Cerca de 30 professores oriundos de diversos países europeus criaram uma rede de investigação e estão a implementar um plano de avaliação das aproximadamente 100.000 actas do referido pontificado. O projecto é orientado pelos professores Hubert Wolf (Münster), Alberto Melloni (Bolonha) e Jean François Chauvard (Roma). A investigação histórica dedica especial interesse ao período em que Eugénio Pacelli, que viria a ser o Papa Pio XII, foi Núncio na Alemanha (1917-1929).
O arquivo de Pacelli na Internet
Sob a direcção de Hubert Wolf, catedrático da Universidade de Münster para História da Igreja nas Idades Média e Moderna, celebrou-se nessa cidade entre 24 e 26 de Março o simpósio internacional "Eugénio Pacelli, Núncio na Alemanha". O centro dos interesses reside na edição online dos documentos da Nunciatura redigidos por Eugénio Pacelli, uma ferramenta de trabalho de primeira ordem para se conhecer o pensamento do futuro Papa.
Aproximadamente 6.500 mensagens constituem este acervo documental da Nunciatura, que Eugénio Pacelli dirigiu ao seu superior, o cardeal secretário de Estado Pietro Gasparri (1914-1930), a quem o próprio Pacelli viria a suceder em 1930. A referida correspondência, de temáticas e extensão muito diversas, - desde telegramas de poucas linhas a pro-memorias de 100 páginas, e em muitos casos também com extensos anexos -, irão ser durante os próximos anos publicados na Internet, em cooperação com o Instituto Histórico Alemão de Roma e o Arquivo Secreto do Vaticano. Os documentos correspondentes ao ano de 1917 estão a partir de Março disponíveis em www.pacelli-edition.de.
Este lançamento deu azo a que a equipa dirigida por Hubert Wolf explicasse, no Simpósio "Eugénio Pacelli, Núncio na Alemanha" em que consiste o referido projecto. O núcleo da edição crítica das 478 comunicações conhecidas para o ano de 1917 é a comparação entre as minutas e os textos definitivos, tal como se encontram no Arquivo Secreto do Vaticano ou nos arquivos das nunciaturas de Munique e de Berlim, bem como na Secretaria de Estado.
Por exemplo, em duas áreas do mesmo écran podem-se visualizar a minuta e o documento correspondente, de modo a possibilitar uma comparação directa. Mediante excertos de textos reproduzidos a cores diferentes pode-se reconstruir a génese de um texto e as modificações que sofreu, pois, pelos cálculos do grupo de trabalho, aproximadamente um terço das minutas não tem por autor o próprio Pacelli, mas colaboradores seus. Um complexo sistema de busca permite encontrar o material de arquivo, tanto sob o ponto de vista temático como cronológico. A correspondência está redigida em italiano; os anexos, em diversas línguas. A "metalinguagem" da edição é, no entanto, o alemão, língua do texto que precede cada comunicação da Nunciatura e que resume o respectivo texto.
A edição online da correspondência da Nunciatura faz parte de um vasto contexto: as Edições digitais de fontes modernas (Digitale Editionen neuzeitlicher Quellen, abreviado DENQ), o projecto romano da Correspondência do Núncio Apostólico na Alemanha, Cesare Orsenigo (1930-1939) e a edição londrina British Envoys to Germany" (1816-1914). Sobre a edição da correspondência do sucessor de Pacelli como Núncio em Berlim, Cesare Orsenigo, elaborada pelo Instituto Histórico Alemão de Roma, o seu director Michael Matheus declarou estar o seu conteúdo disponível desde que o Arquivo do Vaticano disponibilizou as actas do pontificado de Pio XI, a 15 de Fevereiro de 2003. No entanto, o arquivo da Nunciatura de Berlim ficou praticamente destruído por um bombardeamento de 22 de Fevereiro de 1943, pelo que - ao contrário do que acontece com a correspondência de Pacelli - não se conservam as minutas, mas apenas os textos definitivos.
Se bem que o facto de se dispor das fontes "em casa" represente uma ajuda notável, o trabalho clássico nos arquivos continuará a ser imprescindível: "Continuaremos a ter a possibilidade - e a precisar - de ir aos arquivos", disse Michael Matheus no Simpósio de Münster. Não obstante, o director do Instituto Histórico Alemão de Roma considera a edição das fontes do projecto DENQ como uma visão de futuro para a investigação.
Novas possibilidades de investigação
Vários estudiosos intervieram no simpósio para falar sobre diversos campos de investigação para os quais esta edição online pode representar um importante instrumento de trabalho.
Emma Fattorini, professora de História Contemporânea na Universidade La Sapienza de Roma, dissertou sobre os "Primeiros passos diplomáticos da Cúria": em 1917, a Santa Sé não mantinha relações diplomáticas com a França, nem com a Alemanha ou com a Rússia. A abertura em 1917 de uma Nunciatura Apostólica em Munique fez com que Pacelli se convertesse no principal interlocutor da Cúria, não só para a Alemanha, mas igualmente para outros países da Europa Central e Oriental. Emma Fattorini focou em particular o papel do político alemão Matthias Erzberger, que se converteu em informador de grande importância para Eugénio Pacelli: a edição online pode fornecer dados significativos em relação à influência de Erzberger sobre a imagem de Pacelli na política alemã.
Após a exposição de Klaus Unterburger, docente da Universidade de Münster, sobre o cepticismo que despertava em Pacelli a teologia universitária alemã, Philipp Chenaux, professor de História Moderna da Igreja na Universidade Lateranense, referiu-se ao "cunho alemão" do Papa que se seguiu. Não se trata apenas da predilecção de Pacelli pelas virtudes ou pela técnica alemã, mas de questões que vão mais fundo, como seja a continuidade na política de Eugénio Pacelli, uma vez eleito Papa.
Assim sendo, Saul Friedländer considerava a germanofilia e o anti-comunismo de Pio XII como uma razão para o "silêncio" do Papa. A edição online da correspondência da Nunciatura pode contribuir com dados tanto sobre esta questão como sobre a diferente percepção da situação na Alemanha dos anos vinte por parte de Eugénio Pacelli e do cardeal secretário de Estado Pietro Gasparri, bem como, por exemplo, sobre a pergunta se Pacelli ou a Secretaria de Estado estavam a favor de uma concordata em separado com a Baviera.
Philipp Chenaux referiu-se igualmente à reacção do núncio ao Putsch de Hitler e Ludendorff de 9 de Novembro de 1923. Pacelli classificou o movimento de Hitler como "fanaticamente anti-católico". Durante o processo levantado contra Ludendorff em 1924, Eugénio Pacelli referiu-se ao nacionalismo como a "mais grave heresia do nosso tempo". Segundo Chenaux, uma possível razão para o suposto silêncio de Pio XII poderia encontrar-se nas palavras pronunciadas diante do núncio pelo arcebispo de Munique, cardeal Michael Faulhaber: "A guerra contra os judeus transformar-se-ia de imediato numa guerra contra os católicos".
A longa sombra de Hochhuth
Encontrando-se embora fora do limite cronológico abrangido pelo simpósio internacional, não podia faltar num congresso sobre Eugénio Pacelli a polémica gerada à volta da peça O Vigário de Rolf Hochhuth. O investigador norte-americano Mark Edward Ruff tentou uma "historização" da referida polémica, tendo-se referido não apenas às consequências dessa obra de teatro, que converteu o "Papa da paz" (1958) num "Papa que se cala" (1963). Ruff dirigiu a sua atenção em particular para a resposta das "redes católicas" à publicação de O Vigário. Mesmo que as respostas publicadas tenham despertado ainda mais interesse por O Vigário, na verdade a Igreja católica estava perante um dilema: se não respondia, podia dar a impressão de que tais acusações estavam certas. Pelo contrário, ao defender-se delas poderia estar a atrair ainda mais atenções sobre elas.
O projecto de investigação básica, financiado pela Fundação Alemã para a Investigação Científica (Deustsche Forschungsgemeinschaft, DFG) e que se prevê durar 12 anos, editará todas as fontes dos anos em que Pacelli foi núncio em Munique e em Berlim, ou seja, até 1929.
José M. García Pelegrín
Aceprensa
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