Portugal tornou-se uma gigantesca face oculta. Mudar este estado de coisas é tão difícil como imperativo.
Até parece que a corrupção só agora nos atingiu. Nas últimas semanas, dia após dia, a corrupção ocupou os grandes títulos dos jornais, os rodapés dos noticiários, as ondas das rádios, os jornalistas, os analistas, os comentadores. Pareceu-me estranho, não pelo tema, que é importantíssimo, mas por este ser tratado como algo recente que, de súbito, se tivesse revelado ao desconforto e consternação dos portugueses. E não só os media, pois eu bem oiço a communis opinio cochichar nos bancos do metro, nas cadeiras das esplanadas, nas filas do supermercado e, até, na taberna da minha aldeia.
Este tema vem associado ao mau funcionamento da justiça, que, verdade seja dita, é a corrupção maior. Porque crimes sempre os houve e haverá, mas a certeza da impunidade, a percepção da inutilidade da lei, a descrença nos tribunais, isso, sim, é que não poderia acontecer num Estado de direito.
Há já alguns anos que a corrupção instalada no âmago do regime e do sistema é um dado adquirido. Muitos foram (e são) os casos - embora mais pareça nunca terem acontecido - diluídos numa desproporção duvidosa entre o teor dos mesmos e as consequências visíveis, uma espécie de folhetim inglório. O processo da Casa Pia marcou um antes e um depois, numa justiça que de pouco célere passou a pouco credível. Foi aí, se bem me lembro, que os media - a que coube o mérito de pôr a nu tanta vergonha - não resistiram a impor à justiça um tempo mediático que acabou por substituir o seu tempo próprio, o qual, devendo ser célere, não pode nunca ser precipitado. Instalou-se uma grande promiscuidade, com a violação sistemática do segredo de justiça a alimentar a voragem noticiosa, a que se somaram as prescrições, os erros judiciários, os truques dos advogados e, mais recentemente, ao que consta, as pressões dos poderes políticos e económicos.
Que novidade traz a "Face Oculta", o que revela que não soubéssemos já? Aparentemente, nada. Há muito que a corrupção, o tráfico de influências, o enriquecimento ilícito, o abuso de poder tinham saltado dos clubes de futebol para as empresas públicas e privadas, a banca, os grandes concursos públicos, etc., corroendo o tecido político, social e económico do País. O que se passa agora é como aquela gota que faz transbordar tudo: a insustentável centralidade do primeiro-ministro, que, como tal, não é um cidadão qualquer, tem prerrogativas e responsabilidades acrescidas, não podendo separar um estatuto do outro; a contradança, agora mais frenética, dos agentes da justiça - PGR, Supremo; ideias peregrinas de "espionagem política"; pacotes legislativos a granel.
Esperava eu que na campanha eleitoral esta gigantesca metástase constituísse um tema dominante, que os cidadãos eleitores que detêm o poder de mudar fossem exigentes nas perguntas e nas respostas, nas garantias pedidas aos partidos. E que a comunicação social, na sua função mediadora, tivesse feito eco deste desiderato. Mas a campanha foi um tempo de trivialidades e equívocos, sem escrutínio do que é realmente determinante para o nosso futuro.
É bom dizer que se deve presumir a inocência deste ou daquele, mas não se pode impedir que cada um vá formando um juízo de valor, uma percepção, uma dúvida. Serão culpados, serão responsáveis por negligência ou omissão? Não se sabe nem interessa quando a questão passa a eminentemente política, podendo envolver pessoas que decidem sobre nós e a nossa vida. Que os eleitores tenham mantido Sócrates no poder é, para mim, um mistério. Que a opinião publicada, que agora tanto se indigna, tivesse crucificado Ferreira Leite por lhe faltarem algumas das mais inúteis qualidades para governar, desvalorizando as qualidades que tem e que são raras e decisivas para restabelecer o moral de um país doente, é outro mistério.
Portugal tornou-se uma gigantesca face oculta. Mudar este estado de coisas é tão difícil como imperativo. Quanto mais não seja para continuarmos vivos.
Maria José Nogueira Pinto
(Fonte: DN online)
Nota de JPR:
Confesso-vos que hesitei em publicar este artigo de opinião, não por falta de consideração em relação à autora, que é dos resquícios de ética e moral que se consegue ler nos chamados grandes órgãos de informação, que curiosamente, ao que consta, estão todos, ou quase todos, em grandes dificuldades económicas, mas porque o descrédito da justiça é tal que não desejo participar no carnaval dos casos que são apresentados na imprensa e jamais chegam a qualquer conclusão.
Ainda ontem e a propósito das medidas de coacção impostas por um Tribunal a um arguido que era simultaneamente presidente do conselho de administração de uma empresa pública, logo nomeado pelo governo, assistimos como reacção imediata dos advogados de defesa a uma série de ataques orquestrados e pensados para aproveitar a presença da comunicação social, perfeitamente inacreditáveis e com o objectivo de condicionar os juízes.
Ora, não passa de um cliché e de baixo nível, dizer-se que os juízes não são premiáveis a pressões externas, é tão hipócrita como se eu afirmasse, que por ser cristão e católico não sou pecador.
Dir-me-ão, mas não pugnar por uma melhoria da sociedade, é por si só uma atitude pouco cristã e de pouca cidadania, é certamente verdade, mas a Besta, em sentido figurado e muito mais vasto do que João lhe atribuiu no Apocalipse, é tão grande e está de tal maneira arreigada, que temos de pedir através da oração ao Senhor que nos ajude com os seus Anjos e Santos a sobreviver no meio deste pântano.
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