Que os leigos e as comunidades cristãs se tornem promotores responsáveis das vocações sacerdotais e religiosas.
1. A existência humana: dom e chamamento
A existência humana é, à luz da revelação bíblica, “dada” e “chamada” por Deus. “Dada” porque é dom absolutamente livre de Deus, o qual cria, por amor, aquilo que não existia e, por um amor de todo particular, cria o ser humano “à sua imagem e semelhança”; “chamada” porque ser “à imagem e semelhança de Deus” ultrapassa a simples condição de criatura, é chamamento (vocação) a uma relação íntima com o Criador, para viver segundo o seu amor, na alegria da sua presença. A narrativa bíblica da criação do ser humano é elucidativa a este respeito – elucidativa também relativamente ao modo como o ser humano, desde o início, põe em causa este chamamento/vocação, procurando assenhorear-se da própria existência, rejeitando a condição de criatura “dada” por Deus e, assim, negando a sua vocação: ser imagem e semelhança do mesmo Deus (cf. Génesis 1, 26 – 2, 2; 2, 7-20).
2. Ser cristão: graça e vocação
Aquilo que se verifica no acto criador de Deus, desde as origens, aprofunda-se de modo particular, para os cristãos, no baptismo. Este é pura graça de Deus, por meio da qual o discípulo de Jesus “nasce de novo” (João 3, 5 ss) para a plenitude da “imagem e semelhança de Deus” – agora vivida como adesão a Jesus Cristo, o Verbo de Deus feito um de nós, e plena identificação com Ele. Repetem-se o “dom” e o “chamamento”, não para trazer à existência mas para instaurar essa existência numa plenitude de sentido absolutamente para além de qualquer possibilidade humana e numa relação com Deus que passa da antiga “imagem e semelhança” à dignidade de Filhos – o “sereis como Deus” (cf. Génesis 3, 4-5), prometido pela antiga serpente como conquista humana e agora recebido como plenitude de graça, por meio do Espírito Santo.
3. “Ter vocação” ou “ser chamado”?
A vocação não se “tem” como algo próprio, conquistado ou devido por direito – nem a vocação à existência, nem à redenção, nem a desempenhar qualquer tarefa que seja, na Igreja. Não existe essa vocação que se teria como coisa disponível. Há um chamamento – a vocação é exterior à pessoa, apanha-a desprevenida, desinstala-a e muda-lhe o curso da existência. Assim aconteceu com Abraão, Moisés, os profetas, os apóstolos, Paulo... Assim acontece – deveria acontecer – com cada cristão. Em tempos de cristandade, porém, as coisas mudaram e, embora sem negar a iniciativa de Deus, o “chamamento” acabou convertendo-se em algo próprio de poucos, que “tinham” vocação. Desaparecido o ambiente de cristandade, com grande parte dos nossos contemporâneos oscilando entre a indiferença religiosa, o agnosticismo e o ateísmo, importa recuperar a percepção original da vocação como chamamento a seguir Cristo e a tornar-se membro da comunidade nova dos seus discípulos. O resto – carismas, ministérios, entre eles, o de presbítero – virá por acréscimo. Não quer isto dizer que as vocações de serviço, na Igreja, não sejam importantes e que, concretamente, a Igreja possa seguir adiante sem o sacerdócio ministerial. Quer dizer, apenas, que é necessário olhar para a vocação a estes ministérios integrada na vocação primeira: o chamamento a ser discípulo de Cristo e membro da Igreja.
4. Comunidades cristãs e vocações sacerdotais e religiosas
Leigos e comunidades cristãs promotores responsáveis de vocações sacerdotais e religiosas são, em primeiro lugar, leigos e comunidades cristãs conscientes da graça que lhes foi concedida e atentos ao chamamento/vocação que lhes foi feito: ser discípulos do Senhor Jesus. Em comunidades assim – orantes, assíduas aos sacramentos, atentas ao ensino da Igreja, fortes na fé, alegres na esperança, solícitas na caridade para com todos – o Espírito não deixará de chamar aqueles que escolheu para os diversos ministérios, e nem as comunidades ficarão sem presbíteros nem a vida de consagração religiosa sem cristãos e cristãs que a ela se entreguem. Talvez não segundo os modelos do passado. Talvez em formas novas, de gente que, não “tendo” vocação, está à escuta do que o Espírito diz à Igreja e disponível para acolher o chamamento que o mesmo Espírito, através da Igreja, lhe possa fazer – sabendo que por aí passa, de modo definitivo, a sua realização pessoal, a plenitude da sua “imagem e semelhança com Deus” e da sua filiação divina, em Jesus Cristo. Cristãos assim experimentarão o fogo do Espírito, chamando-os a aprofundar o seu estilo de vida cristã, mudando-lhes a direcção, mostrando-lhes como têm andado alheios à graça ou resistido ao seu chamamento. Com temor e tremor, serão capazes de se comprometerem definitivamente ao serviço da comunidade cristã e, nesta e com esta, ao serviço da humanidade inteira, mesmo não sabendo, na altura, tudo quanto tal compromisso implica ou quanto terão ainda de mudar, libertos de si e entregues ao poder santificador do Espírito – ao estilo de Abraão, partindo para uma terra desconhecida, agarrado a uma promessa e confiado na Palavra d’Aquele que o chamava.
Elias Couto
Internacional Elias Couto 30/04/2009 10:47 5145 Caracteres 239 Bento XVI
(Fonte: site Agência Ecclesia)
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