“Pequeno de estatura, cabeça calva, pernas tortas, corpo bem formado, sobrancelhas cerradas, nariz um pouco saliente, cheio de bondade; às vezes parecia um homem, outras vezes, o rosto de um anjo”: este é o retrato de São Paulo apóstolo por um autor anónimo anterior ao ano 200.
Já nos acostumamos a vê-lo assim. Falta, porém, um elemento quase fundamental para reconhecê-lo cabalmente: a espada. Desde o momento em que ela lhe decepou a cabeça, nunca mais o abandonou em suas representações. Penso mesmo que a espada influenciou nossa fantasia: Paulo parece-nos mais um soldado de Cristo, um desbravador dos caminhos do Evangelho, um guerreiro de Deus, do que um pastor. Sem dúvida, quando o Ressuscitado lhe interceptou o caminho para Damasco, Paulo devia estar armado de uma espada. Sim, a espada é um bom ícone de Paulo, homem destemido, fariseu observante, apóstolo audaz.
A espada também aponta para outra faceta da personalidade de Paulo: sua palavra era espada cortante: falada ou escrita, faz ressoar ainda hoje a Palavra do próprio Deus. “A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração” (Heb 4,12).
Com tantas “espadas” na vida de Paulo, será possível vê-lo como pastor? Penso que sim, se atentarmos para as características do pastor bom segundo o Evangelho.
A primeira qualidade do pastor é ser, ele mesmo, ovelha que entra pela Porta: a Porta é Jesus; entrar pela Porta é encontrar-se com Jesus, é ser salvo por Jesus. É nesse encontro que se inicia o processo de identificação com Jesus e, portanto, de transformação da ovelha em pastor. De facto, todo pastor, antes de tudo, deve ser uma boa ovelha, um bom discípulo de Cristo.
Nesse momento, vem-me à mente outro apóstolo, mais fácil de ser visto em vestes de pastor: Pedro. Também para ele foi decisivo o encontro com Jesus. Aliás, os encontros... Há em sua vida dois deles muito significativos que, de pescador, fazem-no pastor. Tais encontros podem ser sintetizados nas perguntas que Jesus faz a Pedro e nas respostas que elas provocam em Pedro. Simplificando, a primeira diz: “Quem sou Eu?” Sabemos como Pedro respondeu.
No caminho de Damasco, a situação parece invertida, mas é igualmente transformadora. Jesus corta o caminho de Paulo com uma pergunta: “Por que me persegues?” Paulo, aturdido, responde com outra: “Quem és Tu, Senhor?”. Paulo pergunta o que Pedro já sabia e ele ignorava. Por isso, Jesus declara-se abertamente: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.” Foi nesse momento que a Porta se abriu, Paulo entrou, de “perseguidor” tornou-se “seguidor”, de ovelha, pastor.
Na raiz do pastoreio confiado a Pedro há uma segunda pergunta, insistente, decisiva: “Pedro, tu me amas?” A resposta à tríplice indagação deixa Pedro de olhos baixos e lacrimosos, mas ele responde com o coração: “Senhor, tudo sabes tudo, tu sabes que eu te amo”. Estas palavras confirmam-lhe a confiança de Jesus que o incumbe de pastorear o rebanho do Pai.
A tríplice pergunta e a tríplice resposta de Pedro não têm paralelos em Paulo. O que Pedro disse prontamente, Paulo o dirá ao longo de toda uma vida. Não se sentia ele como que “agarrado” pelo Ressuscitado? Havia alguém capaz de separá-lo do amor de Cristo? Não dizia que não era mais ele a viver, mas que Cristo vivia nele?
Quando na vida faltar o encontro pessoal com Cristo, quando o amor a Jesus inexistir ou for amortecido, não se procure o pastor; quando muito haverá o mercenário.
Mas, deixemos que Pedro siga seu destino e iluminemos melhor a figura de Paulo enquanto pastor.
A mesma audácia e intrepidez que impelia Paulo a prender os cristãos de Damasco foram o “combustível” de suas andanças e gestas missionárias desde Damasco, pelo Oriente Médio, até Roma: “Ai de mim, se não evangelizar!” E evangelizar é fundamentalmente anunciar o Cristo morto e Ressuscitado. Paulo viveu e morreu em função do cumprimento da missão que o próprio Jesus lhe confiou: “Este homem é um instrumento que escolhi para levar o meu nome perante às nações pagãs e aos reis, e também aos israelitas. Pois eu vou lhe mostrar o quanto ele deve sofrer pelo meu nome” (Act 9,15-16).
O sofrimento que Jesus lhe prometeu marcou presença em todo o trabalho missionário de Paulo. Com a mesma coragem que o zelo farisaico o lançou pela estrada de Damasco, Paulo enfrentou perigos sem conta, um trabalho incansável, perseguições de todo tipo, prisão, ameaças de morte... até que uma espada lhe cortou o fio da vida. As viagens, as vigílias, as pregações, todas as suas gestas apostólicas, fazem de Paulo um pastor entregue totalmente à missão de anunciar Jesus, de corresponder a seu chamado de apóstolo, certo de que, tanto na vida como na morte, pertence ao Senhor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas.
Após o encontro com o Ressuscitado, Jesus dá ordens a Ananias que vá encontrar-se com certo Saulo de Tarso, que naquele momento estava a orar. Ananias explica-lhe o mandato de Jesus e diz-lhe que veio para que recobrasse a vista e ficasse cheio do Espírito Santo. Eis Paulo: homem de oração, cheio do Espírito Santo. Na medida em que o primeiro encontro com o Senhor se renova pela oração ao longo dos dias, o Espírito Santo transforma o coração do pastor. Suas palavras e sua acção missionária tornarão presente o próprio Cristo, na força do Espírito.
Se o encontro com Cristo é transformador, o encontro do pastor com suas ovelhas também deve contribuir para que elas se transformem. Paulo ama suas ovelhas, com elas usa de firmeza e bondade. Sua presença, às vezes, é temida e suas cartas contêm advertências que obrigam a consciência das ovelhas a reconhecer os caminhos errados. Por outro lado, Paulo tem um coração materno, capaz de acolher qualquer ovelha ferida. É sensível a todos os problemas que afligem as comunidades, é o bom amigo que recorda os amigos distantes...
Organizador de comunidades e de estruturas eclesiais, Paulo aprecia o trabalho dos colaboradores, inclusive leigos. Anuncia a Palavra falando e escrevendo, procura estar presente em toda parte, soluciona os problemas das comunidades, expõe e aprofunda a fé em Cristo, polemiza com quem a deturpa, luta para que o Evangelho fermente a mentalidade do tempo... Em suma, Paulo nada poupou, fez-se tudo para todos a fim de cumprir sua missão até o fim.
Paulo brilha nos céus da Igreja como estrela de primeira grandeza e continuará a iluminá-la pelos séculos afora. Paulo, de espada na mão, indica à Igreja – e aos pastores de hoje – que é preciso ter sua mesma audácia para anunciar a Palavra de Deus a um mundo que tacteia por caminhos incertos ou errados.
Sim, de ovelha perdida a ovelha curada e salva; de perseguidor a seguidor de Jesus; Paulo da espada e da Palavra: Paulo, bom pastor!
(D. Hilário Moser, SDB - Bispo Emérito de Tubarão-SC – Brasil)
Fonte: CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, adapatações ortográficas de JPR
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