Acompanho habitualmente o blogue
cultural onde Maria Zarco assina a coluna «Vai um gin do Peter’s?» (no endereço
http://adeus-ate-ao-meu-regresso.blogspot.com/search/label/Maria Zarco). No
último artigo fala de Maria Rueff, a actriz portuguesa mais relevante da
comédia humorística, muitas vezes contracenando com Herman José.
No final de Março passado, convidaram
Maria Rueff para um serão, para falar, diante de uma plateia concorrida, do que
mais lhe importa na vida. A conversa foi gravada no endereço https://rr.sapo.pt/2019/03/28/religiao/como-o-papa-francisco-deu-a-maria-rueff-uns-sapatos/noticia/146073/.
Aproveito os apontamentos de Maria Zarco:
«Percebe-se o diálogo regular de
Maria Rueff com Deus, o seu “amigo de almofada”. Entram juntos em palco e
atravessam juntos o dia-a-dia da actriz. Até o humor, que lhe corre nas veias,
foi depurado pela fé, a partir de um livro que intitulou de “O Sorriso de Deus”,
apenas lembrando bem que o autor era jesuíta. É possível que o título seja
antes “Deus Ri: Alegria, Humor e Riso na Vida Espiritual”, de James Martin, SJ.
Qualquer que seja o canhenho, aprendeu naquelas páginas a esquivar-se da piada
trocista, maldosa, que fere e humilha o caricaturado, para descobrir o lado
vitamínico e catártico da comédia, capaz de iluminar um pouco uma existência
pejada de claros-escuros. Passou a destrinçar os dois territórios do cómico
pela fronteira que as preposições demarcam: “rir com”, nunca “rir de”. E
concluiu: “Sinto-me ao serviço do outro e foi assim que resolvi [a questão] no
meu coração. Encaro o humor como espelho do outro e não como uma farpa”».
«Lembra-se de um conselho
maternal que mais ninguém da sua geração terá recebido, tal a originalidade da
senhora: quando faltavam a Rueff umas décimas para entrar em medicina, disse à
filha – “Ainda bem, porque a tua vocação é o teatro. Vai antes p’ró
Conservatório”. Identifica a marca de Deus na família pela facilidade em
falarem uns com os outros: “Em casa, sempre mantivemos o hábito de conversar.
(…) Deus está muito, muito presente, é como se estivesse ao meu lado. É uma
relação absolutamente íntima, próxima”». Maria Zarco anota que cita de memória e
continua:
«A conversa flui com ritmo,
percebendo-se que Rueff reflecte a sério sobre a vida e a sua condição. A “arte
do ridículo” fê-la crescer, distanciando-a de uma dor relativizada, para
transfigurar a percepção da vida através da “pirueta” saudável e discernida que
o humor opera».
«Adoptou um lema do Papa
Francisco “levai a vida com humor”, entendendo-o como aceitação do outro,
exactamente como ele é. Exemplificou-o com (...) um contratempo de infância,
quando chegou a Lisboa, depois da família perder tudo em África. A catequista queria
excluí-la de uma procissão por não ter sapatos pretos! À data, a criatividade
da mãe solucionou-lhe o problema: [pintou de preto os únicos sapatos que tinha e
a filha pôde participar]. Rueff vê Francisco como alguém que saberia sempre
acolher aquela pequenina com os sapatos da cor que fossem».
«O santo da sua devoção, que lhe
serve de bússola no trabalho, é o pouco conhecido S. Filipe de Nery (1515-1595)
– um italiano jocoso, que não se coibiu de brincar com o Papa e com Santo
Inácio de Loyola. Maria chegou a ir à igreja dedicada a Nery, em Roma, onde lhe
pediu ajuda para se manter nesse trilho exigente e sub-reptício da comédia
bondosa».
«O que Deus lhe pede? “Acho que
Ele nos pede escuta”».
«O que lhe falta fazer? “Deus
sabe! Agradeço tanto a Deus. Não fiz nada, só recebi, embora trabalhe muito”».
«Está preparada para um dia
partir? “Faço muito o exame de consciência, dos jesuítas, e o exercício do
perdão. Já pedi perdão a figuras com quem brinquei e poderei ter magoado...
Também agradeci a quem devia. Estou preparada para Deus me dizer ‘vá, está na
hora’ ”».
«Correm em acelerado aqueles 50
minutos de “flashes” sobre uma vida com garra, graça e atenção aos outros. O
olhar lúcido e meigo dá uma imensa frescura ao seu humor, que entra naquele
registo raro, imune ao cinismo que cede à piada fácil, amargo-corrosiva. Em
Rueff, a vontade de viver aproxima-a de quem a rodeia, para “amar o outro como
ele é. É isso que o humorista faz, de alguma forma”».
Não preciso de assinar este
artigo, basta agradecer à Maria Zarco as frases que copiei do seu bloco de
notas.
José Maria C.S. André
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