A Administração e alguns Directores do estaleiro acompanham membros do Governo numa visita oficial em 1965. Não era só o Eng. Perestrello a usar capacete, mesmo nestas ocasiões. |
A maior parte das histórias que
conheço da vida profissional do meu Pai foram-me contadas por outros, mas ele abria
excepções a esta reserva quando não era o protagonista, ou quando se via como testemunha
passiva dos acontecimentos. Foi assim que conheci, através dele, a história dos
capacetes.
O assunto era muito importante para
o meu Pai, empenhado em promover a segurança dos operários nos estaleiros navais
de Lisboa. Uma das suas iniciativas foi comprar capacetes de protecção e pedir
aos Directores de cada Departamento que os distribuíssem ao pessoal. A seguir,
visitou cada zona de trabalho para verificar se as instruções estavam a ser
cumpridas. Infelizmente, em toda a parte estava montada uma autêntica «guerra
civil». De um lado, os trabalhadores queixavam-se de que era impossível
trabalhar com capacete, de que os capacetes faziam mal à saúde e até criavam
situações de perigo. Do outro lado, os Directores não cediam no uso obrigatório
dos capacetes ainda que, na melhor das hipóteses, só conseguissem vitórias
momentâneas, que não duravam mais do que o tempo de eles virarem as costas. A
guerra ainda não tinha começado no Departamento do Eng. Perestrello, porque ele,
em vez de distribuir imediatamente os capacetes, seguiu outra estratégia.
Vale a pena apresentar brevemente
o Eng. Perestrello. Embora eu não o tenha conhecido directamente, ouvi
testemunhos. Era um homem alto, elegante. Herdara da sua família ilustre um
certo toque de classe, ainda que ele fosse tão acessível e natural que o relacionamento
era descontraído e agradável, sem se notarem as diferenças hierárquicas. Apreciava
cada pessoa, gostava de conversar e de conviver, e toda a equipa, desde os
operários aos engenheiros e aos colegas da Direcção, reconhecia a sua liderança.
Chegaria a ser o Administrador-Delegado do estaleiro da Lisnave.
Como disse, quando recebeu
instruções para distribuir os capacetes, o Eng. Perestrello não se apressou.
Começou por reunir a Direcção e os engenheiros e combinar que eles próprios passariam
a usar capacete. No dia seguinte, mal desceu às oficinas, com o seu capacete,
foram os operários que se dirigiram a ele e lhe pediram para também receberem
capacetes: «se os Directores e os engenheiros usam capacete, muito mais se
justifica essa protecção para quem trabalha nas oficinas». Não foram precisos
muitos argumentos para o convencer e rapidamente se contabilizou e se distribuiu
o número de capacetes necessários.
Nos outros departamentos, a
tensão da «guerra dos capacetes» arrastou-se por mais tempo e a melhoria das
condições de segurança no estaleiro, neste domínio e noutros, exigiu um esforço
enorme e persistente. Só no departamento do Eng. Perestrello as coisas eram
diferentes. Aí – contava o meu Pai –, os operários almoçavam de capacete na
cabeça.
As máscaras faciais, as viseiras
e todas as regras de segurança que as autoridades estabeleceram para o actual
tempo de pandemia recordam-me os capacetes do estaleiro naval nos anos sessenta.
Algumas pessoas sentem verdadeira repugnância em cumprir as regras e estão
convencidas de que as exigências são inúteis, ou até prejudiciais. Sobretudo
quando o Governo, ou até as autoridades eclesiásticas, dão directivas concretas
em relação às igrejas e às cerimónias religiosas, ferve-lhes o sangue de indignação
pelo desprezo das coisas de Deus e o desrespeito pela liberdade fundamental de
Lhe prestar culto. Realmente, a obediência é uma virtude difícil quando choca
com o nosso ponto de vista.
Talvez uns líderes tenham mais
jeito que outros para facilitar a obediência. Em todo o caso, é interessante
reparar como – dependendo da perspectiva com que vemos as situações – a mesma
coisa nos parece intolerável ou a consideramos um direito honrosamente
conquistado.
Talvez a obediência mais custosa
tenha mais mérito e dê mais alegria a Deus. Ainda que talvez, com alguma
distância emocional, acabemos por reconhecer que «não era caso para tanto».
José Maria C.S. André
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