Senhor Santo Cristo |
Assistimos ao «colapso das evidências». Princípios que, durante tantos séculos, pareceram óbvios deixaram de o ser. Habituámo-nos a considerar como «evidências» o respeito pela vida, a dignidade da pessoa, a importância da fidelidade familiar, a diferença entre o homem e a mulher... e tantas bases da civilização ocidental. O que está a acontecer?
Aproveitei a pausa do 1º de Maio para pensar no impacto do cristianismo na cultura, ouvindo e trocando ideias. Um ponto alto da conversa foi o contacto com o livro de Julián Carrón «A Beleza Desarmada» (editado em português pela Princípia), cheio das sugestões inspiradas de don Luigi Giussani, Fundador do movimento «Comunhão e Libertação». Uma delas diz justamente respeito ao «colapso das evidências» éticas e culturais.
Durante séculos, elas não tinham sido «evidentes», até o cristianismo iluminar o olhar dos povos que se converteram e hoje, com a derrocada do cristianismo nalguns âmbitos culturais, essas evidências obscureceram-se de novo.
Houve tempo em que se pensou que mostrar que o aborto mata um bebé, usando até fotografias claras, seria irrefutável mas, a certa altura, tornou-se claro que uma parte da sociedade já não partilha a «evidência» de que é preciso respeitar a vida humana. «A situação está de facto radicalmente mudada, diz Julián Carrón: não é que as pessoas vejam a evidência e a neguem – porque são más, ou são fechadas –; não a vêem mesmo, e isso faz parte da decadência do humano a que constantemente assistimos».
Don Luigi Giussani foi dos primeiros a aperceber-se deste obscurecer das evidências: «Parece-me haver agora uma maior fragilidade de consciência; não uma fragilidade ética, mas de energia da consciência. (...) É como se hoje não houvesse mais nenhuma evidência real a não ser a moda (...)». Outros testemunhos convergem. Por exemplo, Carrón cita o então Cardeal Ratzinger: «O colapso das antigas seguranças religiosas, que há 70 anos parecia ainda poder ser travado, tornou-se, entretanto, em grande parte realidade. O medo de uma derrocada do humano, inevitavelmente a isso associado, torna-se ainda mais forte e mais geral» («Fé Verdade e Tolerância», editado em português pela Universidade Católica).
O que se verificou foi uma «redução das capacidades fundamentais do homem», a ponto de ele perder um grande número de evidências acerca da própria natureza humana. «É a percepção da condição humana, no seu todo, do humano enquanto tal, que é reduzida. (...) O influxo [actualmente dominante] não reduz, em primeiro lugar, a nossa capacidade ética, de coerência, mas a capacidade de olhar», diz Julián Carrón.
O facto histórico de abundantes evidências éticas basilares só terem sido reconhecidas na sociedade europeia depois de ela ter sido permeada pelo cristianismo indica que a mensagem cristã é também uma mensagem poderosíssima acerca do homem. Nesse sentido, Carrón diz que «Cristo veio despertar a nossa capacidade de conhecer o real», porque a transformação do coração abriu os olhos a estes povos e despertou energias que mudaram completamente o horizonte. «Se nós podemos dizer que vemos, é só porque somos cristãos, (...) porque Cristo nos coloca na posição de ver».
Já no século XIX o Concílio Vaticano I lembrava que «os preceitos da lei natural não são percebidos por todos de maneira clara e imediata (...) tanto a graça como a Revelação são necessárias para que as verdades religiosas e morais [as tais “evidências”] possam ser conhecidas por todos». O «Catecismo da Igreja Católica» reproduz este texto. Um documento recente da Comissão Teológica Internacional vai na mesma linha: «é necessário ser modesto e prudente quando se invoca a “evidência” dos preceitos da lei natural». A colectânea recolhida por Carrón mostra como o esmorecer do cristianismo nalguns sectores da sociedade europeia confundiu o olhar de muitos acerca do sentido da própria condição humana. Apesar de toda a tecnologia, voltou-se à cegueira pagã dos séculos anteriores à conversão. Já nem se consegue distinguir um homem de uma mulher!
Pergunto-me o que fazer para ajudar tantas pessoas, boas e generosas, a captarem a diferença entre uma família e um par homossexual; a diferença entre apoiar quem está em dificuldade e matá-lo; a diferença entre estimarmos os outros e escondermos as nossas convicções; a diferença entre encarar o sexo com agradecimento e responsabilidade ou desvalorizá-lo como um capricho...
Depois deste livro, fiquei convencido de que as respostas racionais nunca serão suficientes. Sem uma cultura feita da surpresa concreta de se cruzar com Cristo, de testemunhos reais desse encontro, não se consegue ressuscitar esta Europa exausta, em fim de vida.
Recordei-me daquele olhar do Senhor Santo Cristo, em procissão neste Domingo pelas ruas de Ponta Delgada. Oxalá aquele olhar nos toque! Um por um! Porque, se isso acontecer, tudo muda.
José Maria C.S. André
06-V-2018
Spe Deus
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