Obrigado, Perdão Ajuda-me

Obrigado, Perdão Ajuda-me
As minhas capacidades estão fortemente diminuídas com lapsos de memória e confusão mental. Esta é certamente a vontade do Senhor a Quem eu tudo ofereço. A vós que me leiam rogo orações por todos e por tudo o que eu amo. Bem-haja!

sexta-feira, 24 de abril de 2020

REFLEXÕES SOBRE A PESTE DE 2020 (V) Luís Filipe Thomaz

Tornando às múltiplas lições que se podem retirar da presente situação, contentar-me-ei por realçar só uma, que me parece a principal: a pequenez do homem, como indivíduo, de que falava Eugénio Viassa Monteiro, mas, sobretudo, a fraqueza de todas as criações humanas.
              Pelo menos desde a Revolução Francesa que lavra no Ocidente uma tendência, mais ou menos vincada conforme os lugares e os momentos, para substituir a religião de Deus pela religião do estado, novo deus dos nossos dias. Estou crente em que, muito mais que o espantalho do islão que muitos agitam, é esse o verdadeiro inimigo da Europa, pois consome-a por dentro. É verdade que o grande afluxo de muçulmanos, sejam refugiados, sejam trabalhadores em busca de melhor vida, faz temer o risco de ver a Europa cristã afogada em gente moira, como se diz em Goa. É verdade que o terrorismo, que ontem se valia do anarquismo, de marxismo-leninismo ou do maoismo, se estriba hoje quase exclusivamente no islamismo; mas não menos verdade é que a esmagadora maioria dos muçulmanos não são terroristas. De qualquer modo o islão é um sistema que liga intimamente religião e política, e que tem dificuldade em se adaptar fora da proteção de um estado confessional e prescindir do seu poder coercitivo, pelo que uma maioria muçulmana representa realmente uma eventualidade preocupante.
              Seja como for, não me parece que resida no islamismo a principal ameaça à civilização ocidental, mas antes no vírus que a corrói do interior. E esse é o confinamento de Deus, como se estivesse empestado, e a correlativa exaltação do estado como um deus.
              Sempre gostaram os governantes de se apresentar como superiores aos outros, e em muitas monarquias antigas, como o Egito ou o Camboja de Angkor, o rei era considerado uma divindade. É talvez por isso que expressões como "adorai o Senhor todos os reis da Terra" são recorrentes na Bíblia, particularmente nos salmos. Havia que reduzir os monarcas às suas verdadeiras dimensões!
              Hoje, não penso que quejanda concepção possa ser crível. Substituiu-a, porém, uma concepção afim, mais subtil mas não menos perigosa: a divindade do estado. Se o Dalai-Lama é suposto ser uma reencarnação do bodhisattva Avalokiteśvara, "o Compassivo senhor", o estado moderno olha-se a si mesmo como corporização da racionalidade. Mas não há pior tirania do que a da racionalidade, pois quem se não conforma com quem julga detê-la, a si mesmo se exclui do número dos racionais. E o Transcendente? E o Infinito? Caberão no racional?
              Enumeremos algumas aberrações. Por exemplo a constituição mexicana de 1917 afirmava, logo no seu primeiro artigo, que todo o cidadão gozaria de tais e tais direitos, "que lhe concede o Estado". Por conseguinte o homem não era sujeito de direitos por ser, à imagem de Deus, uma pessoa e um ser livre, mas por magnânima concessão do estado — de que os indivíduos constituiriam, por assim dizer, meramente o conteúdo…
              Não é, contudo, só no México jacobino de começos do século XX que topamos com tais desvarios: ainda há bem pouco tempo, salvo erro em 2012, o governo francês decretou que o massacre dos arménios da Turquia em 1915 foi um genocídio, cominando penas a quem o contrário disser. Noutros países é proibido negar o holocausto dos judeus na segunda guerra mundial. Não se trata de punir, genericamente, quem para fins políticos ou semelhantes falsifique a História: trata-se de impor sobre casos bem determinados, uma verdade oficial, que o estado, omnisciente, conhece infalivelmente, embora os cidadãos se possam enganar — e isto para não discutir já esta espécie de neo-nominalismo, para o qual mais importante que as coisas é o nome que se lhes dá. Infelizmente pouca gente nota o totalitarismo latente que se esconde por detrás de tal legislação. E ninguém pensa que se de hoje para amanhã advier um governo anti-arménio ou anti-judaico pode decretar o contrário, e a mentira tornar-se-á verdade, e a verdade mentira…
              Em Portugal D. João III criou em 1532 a Mesa da Consciência e Ordens para o ajudar na resolução de casos "que tocavam à obrigação de sua consciência". Era uma junta de letrados, teólogos, juristas, moralistas, escolhidos pelo seu mérito, que deram muitas vezes sentenças contra o próprio Rei. Em Inglaterra há ainda "tribunais de equidade" que julgam casos não regulados pela lei escrita, conforme o que parece justo e equitativo — em última análise, conforme a lei eterna, de que todo o homem tem uma noção mais ou menos clara; mas na maior parte dos países não há senão "tribunais constitucionais" , que verificam se as leis que os homens fazem hoje estão de acordo com a lei que fizeram ontem.
              Em vários países é proibido o uso da burka muçulmana. Porquê? Porque permite que debaixo dela se esconda o assassino ou o ladrão? Porque neutraliza as câmaras de televisão que, para segurança de todos, existem nos supermercados e outros espaços públicos? Não. Porque é um "sinal religioso demasiado visível"! Mas acaso a religião é uma coisa vergonhosa que se não possa manifestar em público? O estado moderno é contudo alérgico à ideia de que acima dele possam existir instâncias mais elevadas…
              Sempre houve pessoas que, ou por a ideia de Deus lhes causar incómodos, ou por dificuldade em conceber o Infinito, não acreditaram n'Ele. Disso se queixam já os salmos 13 e 52, que ambos começam pela mesma frase: "Diz o estulto em seu coração: não existe Deus". No entanto o ateísmo moderno, seja sob a forma virulenta que lhe conhecemos no comunismo ou no nazismo, seja sobre a forma insidiosa que hoje se insinua na nossa cultura, vai mais longe: pretende-se explicitamente construtivo, ou seja, quer refundar o mundo, substituindo ao Universo, concebido e presidido por Deus, um outro, ao sabor da sua Ideia.
          Num belo livro, escrito sob a ocupação da França pelos nazis, entre 1942 e 1946, o jesuíta francês Henri de Lubac, após percorrer os grandes desvarios da nossa época conclui, citando um belo texto de S. Gregório de Nissa: banido Deus do mundo, o Homem, feito à Sua imagem perde a razão de ser da sua dignidade. De facto, se ao Universo não preside um Ser livre, inteligente e soberano, o homem queda reduzido a mero dente de uma das rodas dentadas da grande engrenagem em que consiste o mundo. E a máquina do mundo tritura-o.
              Suprimido Deus, não é apenas o Homem que fica reduzido a uma peça do mecanismo do cosmo e cessa de ser pessoa: é a hierarquia dos valores que queda sem sentido e sem princípio. A liberdade de religião torna-se mais importante do que a religião em si, o carneiro mais digno do que o Homem, e assim sucessivamente. Daí o politeísmo jurídico que tende a invadir a vida pública. E cada divindade, cada pequeno deus, exige que se lhe erga o seu altar e reclama sacrifícios… Dois ou três exemplos bastam.
              Há pouco meses ainda, todos pudemos ouvir na televisão o primeiro-ministro da Dinamarca declarar (talvez na melhor das intenções, só Deus, que perscruta os corações dos homens o sabe ao certo) a propósito do abate de animais nos matadouros: "os direitos dos animais são mais importantes do que a religião"! Direito é, nesta acepção, um título ou prerrogativa que uma pessoa pode exigir ou reivindicar. Muito gostaria de ver ainda um dia, não digo já uma lesma ou uma minhoca, mas um cão ou um gato reivindicar em tribunal os seus direitos… Não seremos nós, seres racionais, que temos deveres para com os animais? Mas adentro da religião dos direitos individuais não há já espaço para deveres. E assim fica a religião, que eleva o homem até Deus e o diviniza, rebaixada a um nível inferior ao dos próprios animais…
              E que dizer da sentença magistral que há tempos proferiu um juiz, salvo erro do tribunal europeu dos direitos humanos, sobre os títulos de renda vitalícia que os bancos e mutualidades disponibilizam? É evidente que, para não terem prejuízo, essas instituições de crédito se baseiam sobre o cálculo das probabilidades, levando em conta as estatísticas da duração da vida humana. Ora como toda a gente sabe, as mulheres duram em média mais que os homens, nuns países mais, noutros menos, nalguns cerca de dez anos. Por isso para o mesmo capital os bancos atribuíam aos varões, que duram menos, rendimento superior ao que atribuíam às fêmeas. Decretou porém o tal juiz que essa diferença era ilegal, pois contrariava o princípio inviolável da igualdade dos sexos. Resta agora aos varões um só recurso: apelarem para a Divina Providência de Estrasburgo, reivindicando, ao mesmo título, o direito de viverem tanto tempo quanto as mulheres; e assim ficará resolvido o problema…
              E porque não? Se as instâncias humanas se permitem decretar que um homem pode ser mulher de um outro homem e que o género é, graças a uma generosa concessão do estado omnipotente, algo que cada um pode escolher, e não um caráter que lhe imprimiu a natureza?
              Não é preciso imaginar que Deus tenha baixado do céu para castigar o homem, semeando no mundo um vírus destruidor: é a natureza muda que, sem proferir palavra, reclama os seus direitos, proclamando que o poder que sobre ela detém o homem tem limites!
              O derradeiro exemplo é o mais trágico e o mais elucidativo. Passou-se pelo Natal, há já talvez uma dezena de anos. Um americano, monstruosamente gordo, veio passar as férias do Natal a Itália. À vinda não teve problemas. No regresso, contudo, no aeroporto de Milão levantaram dificuldades ao seu embarque porque não havia cinto de segurança que o abrangesse. Depois de muito discutir e de andar de Herodes para Pilatos acabaram por lhe aconselhar que fosse para Genebra de comboio, pois aí ser-lhe-ia mais fácil embarcar, não sei bem por que razão: ou porque houvesse aí cintos de calibre mais elevado, ou porque fossem menos rigorosos na inspeção, ou talvez porque na cidade em que nasceu a Sociedade das Nações e foram proclamados os Direitos do Homem o compreendessem melhor; não sei. Só que o estratagema não deu os resultados que se esperavam. Também ali lhe levantaram problemas; e foi esperando. E assim, enquanto o caso não era resolvido pelas sucessivas instâncias por que transitou, passou uma semana inteira nos bancos do aeroporto; e acabou por ali morrer.
              O homem morreu; mas salvou-se o mais importante de tudo: a ideia da segurança do Homem. Não será assim posta em causa a eficácia infalível das regras que o Homem faz!
              Não foi, pois, só em Cartago e no México pré colombino que os ídolos exigiam sacrifícios humanos!
              Retomando a bela expressão de Eugénio Viassa Monteiro, "A atual crise do vírus mostrou ao homem a sua pequenez". E não só: mostrou também a das suas instituições, bem como a fragilidade dos vários ídolos que criou  — todos, como o do sonho de Nabucodonosor  (Dan 2, 32-43), de pés de barro…
              Através da presente epidemia é como se Deus de novo pela boca de Moisés nos dissesse:

Onde estão os seus deuses, o rochedo onde buscavam refúgio? Junto a quem consumiam a gordura das vítimas e bebiam o vinho de suas libações…
Que se ergam e vos socorram e na necessidade vos protejam! (Deut 32, 38).

(continua, são no total VII reflexões)

Sem comentários: