Obrigado, Perdão Ajuda-me

Obrigado, Perdão Ajuda-me
As minhas capacidades estão fortemente diminuídas com lapsos de memória e confusão mental. Esta é certamente a vontade do Senhor a Quem eu tudo ofereço. A vós que me leiam rogo orações por todos e por tudo o que eu amo. Bem-haja!

terça-feira, 21 de abril de 2020

REFLEXÕES SOBRE A PESTE DE 2020 (II) Luís Filipe Thomaz

A segunda reflexão foi-me sugerida por uma conversa que escutei, à porta de uma loja, enquanto esperava fora a minha vez de ser atendido: explicava um velhote que a epidemia se devia aos chineses, que inventaram o vírus e o espalharam pelo mundo, para provocarem uma crise económica e assim poderem adquirir todas as empresas falidas. É evidente que é uma tese que jamais alguém conseguirá provar, mas não foi isso que me chamou a atenção: foi a mentalidade que lhe está inerente.
              No meio do racionalismo que de alguns séculos a esta parte domina o pensamento ocidental, pouco espaço há para o mistério. Tudo se explicaria por causas simples que o homem, com um pouco de esforço, seria sempre capaz de determinar. Já há anos, quando caiu a ponte de Entre-os-Rios e morreu uma vintena de pessoas, ouvi na televisão alguém da região afirmar: "é preciso descobrir o responsável, pois tem de haver um responsável…".
              Dentro desta mentalidade não se compreende sequer o que é o concurso fortuito de diversas causas, que uma a uma talvez se possam compreender, mas cuja concomitância permanece inexplicável. É como a água régia, mistura de ácido nítrico e clorídrico, que juntos conseguem dissolver o ouro, embora nenhum deles de per si o alcance. Se dentro de tal mentalidade resta ainda algum lugar para Deus é porque a sua majestade como Criador se impõe instintivamente a toda a criatura; mas não há já espaço para o Diabo!
              Se em certa medida se pode afirmar que a cultura contemporânea é marcada por uma certa morte de Deus, raros são os que dão conta de que essa foi de longa data preparada pela morte do Diabo. Não pretendo com isto afirmar que se imponha crer no demónio que tradicionalmente se figura: negro, como filho das trevas que é, com rabo de animal e cornos na testa, a entremostrar que na hierarquia dos seres queda mesmo abaixo do próprio homem, e grande forquilha na mão. O que se não deve perder de vista é que o Mal é um mistério, e que sobre a criação impende constantemente um potencial de maldade, pronto a precipitar-se sobre o mundo se algo o faz entrar em movimento. Pensemos, por exemplo, na Segunda Guerra Mundial. Eu era então criança, contava apenas três anos; só me recordo de estar então em Sintra, em casa da minha avó e ouvir subitamente foguetes a estalar no ar e os sinos todos a tocar, e a minha avó, comovida, a dizer-me de lágrimas nos olhos; "acabou a guerra, meu filho!". Só muito mais tarde vim a entrever o horror que fora.
              A Alemanha saíra da Primeira Grande Guerra não só vencida, mas também humilhada e ofendida. Não era a primeira vez que isso acontecia na História; mas na atmosfera de racionalismo e positivismo que dominava a cultura da época, a culpa tinha de ser de alguém. Era mister encontrar um bode expiatório. Acharam-no nos judeus, e decidiram por isso eliminá-los. E foram os horrores de Auschwitz e tudo o mais que não cabe aqui enumerar…
              Hitler chegou mesmo a descobrir que a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, que era basco — e tinha, portanto, por idioma materno uma língua que não pertencia à família indo-europeia ou ariana — tinha por inconfessado objetivo opor-se aos arianos e assim evitar a supremacia alemã sobre o mundo!
              Foi um pouco a mesma coisa no Camboja dos Khmeres Vermelhos: se a Revolução não avançava, era devido aos inimigos do povo, aos exploradores das mais-valias de quem trabalhava e produzia, e a seus aliados confessos ou ocultos. Havia que eliminá-los. Ai de quem soubesse falar francês ou fosse dono de uma simples loja de comércio em qualquer rincão perdido. Não sei exatamente quantas pessoas pereceram. Não é esse o problema: aberta a porta à acusação dos conspiradores, que impediam a História de seguir o rumo que devia, tanto podia morrer um como morrerem todos.
              A priori toda a ideologia é perversa, pois, na bela expressão de Henrique Barrilaro Ruas, é “o pensamento a substituir-se ao conhecimento”, ou, se preferirmos, o λόγος ou razão humana a tomar o lugar do Λόγος, o Verbo Divino, num vão esforço para recriar o mundo — vão porque nenhuma ideia humana possui a potência criadora do Λόγος, por Quem todas as coisas foram feitas (Jo, 1, 3). A ideologia implica, frequentemente, que para que se salve a Ideia, pereça o Homem — e assim sucedeu e voltará a suceder sempre que à realidade das coisas se antepuser qualquer ideia humana transformada em deusa, por elevada e nobre que possa ser, como as de igualdade, de liberdade ou de justiça social.
              Felizmente para os nossos irmãos anónimos, é difícil achar para uma epidemia um bode expiatório. Nem os americanos a podem imputar ao Irão, nem os proletários aos seus exploradores, nem os nazis aos judeus, nem os burgueses aos indesejáveis comunistas…

(continua, são no total VII reflexões)

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