A
segunda reflexão foi-me sugerida por uma conversa que escutei, à porta de uma
loja, enquanto esperava fora a minha vez de ser atendido: explicava um velhote
que a epidemia se devia aos chineses, que inventaram o vírus e o espalharam
pelo mundo, para provocarem uma crise económica e assim poderem adquirir todas
as empresas falidas. É evidente que é uma tese que jamais alguém conseguirá
provar, mas não foi isso que me chamou a atenção: foi a mentalidade que lhe
está inerente.
No meio do racionalismo que de
alguns séculos a esta parte domina o pensamento ocidental, pouco espaço há para
o mistério. Tudo se explicaria por causas simples que o homem, com um pouco de
esforço, seria sempre capaz de determinar. Já há anos, quando caiu a ponte de
Entre-os-Rios e morreu uma vintena de pessoas, ouvi na televisão alguém da
região afirmar: "é preciso descobrir o responsável, pois tem de haver um
responsável…".
Dentro desta mentalidade não se
compreende sequer o que é o concurso fortuito de diversas causas, que uma a uma
talvez se possam compreender, mas cuja concomitância permanece inexplicável. É
como a água régia, mistura de ácido nítrico e clorídrico, que juntos conseguem
dissolver o ouro, embora nenhum deles de per si o alcance. Se dentro de tal
mentalidade resta ainda algum lugar para Deus é porque a sua majestade como
Criador se impõe instintivamente a toda a criatura; mas não há já espaço para o
Diabo!
Se em certa medida se pode afirmar
que a cultura contemporânea é marcada por uma certa morte de Deus, raros são os que dão conta de que essa foi de longa
data preparada pela morte do Diabo.
Não pretendo com isto afirmar que se imponha crer no demónio que
tradicionalmente se figura: negro, como filho das trevas que é, com rabo de
animal e cornos na testa, a entremostrar que na hierarquia dos seres queda
mesmo abaixo do próprio homem, e grande forquilha na mão. O que se não deve
perder de vista é que o Mal é um mistério, e que sobre a criação impende
constantemente um potencial de maldade, pronto a precipitar-se sobre o mundo se
algo o faz entrar em movimento. Pensemos, por exemplo, na Segunda Guerra
Mundial. Eu era então criança, contava apenas três anos; só me recordo de estar
então em Sintra, em casa da minha avó e ouvir subitamente foguetes a estalar no
ar e os sinos todos a tocar, e a minha avó, comovida, a dizer-me de lágrimas nos
olhos; "acabou a guerra, meu filho!". Só muito mais tarde vim a
entrever o horror que fora.
A Alemanha saíra da Primeira
Grande Guerra não só vencida, mas também humilhada e ofendida. Não era a
primeira vez que isso acontecia na História; mas na atmosfera de racionalismo e
positivismo que dominava a cultura da época, a culpa tinha de ser de alguém.
Era mister encontrar um bode expiatório. Acharam-no nos judeus, e decidiram por
isso eliminá-los. E foram os horrores de Auschwitz e tudo o mais que não cabe
aqui enumerar…
Hitler chegou mesmo a descobrir
que a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, que era basco — e
tinha, portanto, por idioma materno uma língua que não pertencia à família
indo-europeia ou ariana — tinha por inconfessado objetivo opor-se aos arianos e
assim evitar a supremacia alemã sobre o mundo!
Foi um pouco a mesma coisa no
Camboja dos Khmeres Vermelhos: se a
Revolução não avançava, era devido aos inimigos do povo, aos exploradores das
mais-valias de quem trabalhava e produzia, e a seus aliados confessos ou
ocultos. Havia que eliminá-los. Ai de quem soubesse falar francês ou fosse dono
de uma simples loja de comércio em qualquer rincão perdido. Não sei exatamente
quantas pessoas pereceram. Não é esse o problema: aberta a porta à acusação dos
conspiradores, que impediam a História de seguir o rumo que devia, tanto podia
morrer um como morrerem todos.
A priori toda a ideologia é perversa, pois, na bela expressão de
Henrique Barrilaro Ruas, é “o pensamento a substituir-se ao conhecimento”, ou,
se preferirmos, o λόγος ou razão humana a tomar o lugar do Λόγος,
o Verbo Divino, num vão esforço para recriar o mundo — vão porque nenhuma ideia
humana possui a potência criadora do Λόγος,
por Quem todas as coisas foram feitas (Jo, 1, 3). A ideologia implica, frequentemente, que para que se salve a
Ideia, pereça o Homem — e assim sucedeu e voltará a suceder sempre que à
realidade das coisas se antepuser qualquer ideia humana transformada em deusa,
por elevada e nobre que possa ser, como as de igualdade, de liberdade ou de
justiça social.
Felizmente
para os nossos irmãos anónimos, é difícil achar para uma epidemia um bode
expiatório. Nem os americanos a podem imputar ao Irão, nem os proletários aos
seus exploradores, nem os nazis aos judeus, nem os burgueses aos indesejáveis
comunistas…(continua, são no total VII reflexões)
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