Mais de 30 esculturas de Canto da Maia podem ser admiradas até 31 de Dezembro de 2015 no Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada. Ernesto Canto da Maia foi um dos nossos mais originais escultores de meados do século XX, o que diz muito, porque nessa época Portugal teve várias figuras de nível verdadeiramente mundial.
Na minha opinião, o período artístico mais fecundo de Canto da Maia foram os seus longos anos de Paris, mas não me esqueço de que ele nasceu e morreu nos Açores, além de que é evidente que ele colheu inspirações na cultura açoriana. O Museu Carlos Machado está de parabéns por hospedar, até finais de Dezembro, esta exposição.
Para quem acompanha as preocupações pastorais do Papa Francisco, o legado artístico de Canto da Maia cobra uma oportunidade singular, porque ele soube esculpir, de forma magistral, o amor na família. Não vou reduzir a riqueza multifacetada do seu trabalho a uma só perspectiva, mas qualquer admirador reconhece que ele foi particularmente brilhante e original a tratar este tema. É só visitar a exposição, salta à vista...
A obra de Canto da Maia inclui painéis de grande escala, figuras de heróis, estátuas comemorativas, que se podem admirar em várias cidades do país, e um conjunto singular de peças mais pequenas. As grandes esculturas foram geralmente feitas por encomenda, mas o melhor que ele deixou para a posteridade é o tal conjunto de peças não monumentais, que ninguém lhe pediu, mas ele sentiu necessidade de realizar. O mistério do amor conjugal e o vínculo familiar foram a inspiração central destas esculturas. Pegando no tema sob vários ângulos, ele enfrentou o desafio de dizer, com a força da imagem, o que há de mais espiritual e subtil na vida humana.
Canto da Maia tinha a consciência de que há mistérios tão sublimes que não cabem em palavras. Em 1913, ele escrevia aos pais que «a escultura devia realizar qualquer coisa de grande, de imaterial, na via para atingir a intensa verdade do infinito».
Esta espécie de milagre que lhe inspirou a vida, cumpriu-se. Modelada pela sua arte, a terracota foi capaz de exprimir qualquer coisa de grande, de imaterial. Transfigurou-se. Até atingir uma eloquência sublime. Contempla-se cada uma daquelas peças e percebe-se. Tentamos explicar e não somos capazes.
Repare-se em peças como «Adão e Eva» ou «Hino do Amor», «Bendito seja o Fruto do Teu Ventre», «Baiser», ou a «Virgem com Menino», ou qualquer das outras, sobretudo do período de Paris. Por exemplo, a primeira, «Adão e Eva» ou «Hino do Amor», que tem várias versões em Ponta Delgada e uma no Museu de Arte Contemporânea em Lisboa: um homem e uma mulher estão frente a frente, nus. A composição sugere simetria, igual dignidade e, ao mesmo tempo, uma diferença patente, sem estereótipo. A distinção joga-se em curvas imperceptíveis, em proporções levemente diferentes. É evidente quem é o homem e quem é a mulher. Assim como é evidente que a harmonia da conjunção só é possível porque a simetria acontece num plano de igualdade em que os papéis são diferentes. As esculturas encaixam-se idealmente, mas não se tocam. Há um gesto de respeito, de pudor, que exclui a mera exuberância da carne. A forma estilizada dos dois corpos sugere que não se expõe tudo, mas também não se esconde. A carne está presente, mas elevada num amor pausado, cheio de cerimónia, que sabe apreciar e honrar o outro. Os olhos cerrados de ambos parece que vêem (como é que o escultor conseguiu esta proeza?). Os dois admiram-se, para além até dos corpos, de olhos fechados a fitarem um horizonte que nós não vemos, mas eles sim. A boca parece que vai abrir-se, mas é como se os lábios não chegassem a dizer nada, como quem adora em silêncio, ou como quem reza.
Há oferta e acolhimento naquelas figuras, no entanto, a iniciativa generosa do homem é diferente da dádiva da mulher. Complementam-se, oferecem-se, não se copiam. Não nos passa pela cabeça separar o grupo escultórico em duas partes, apesar de as duas esculturas serem, de facto, peças totalmente soltas. Nem nos imaginamos a rodar as figuras, de modo que deixassem de estar uma diante da outra, frente a frente. À medida que a atenção se prende aos pormenores, começamos a perceber que, para além de uma tonalidade idêntica e de serem constituídos por um mesmo material, não há verdadeiramente duplicação entre o homem e a mulher. Cada figura requer a outra e a simetria consiste nessa correspondência, mais do que na exactidão da forma.
É igualmente interessante apreciar o espaço que se cria entre os corpos: os dois braços do homem e o braço direito da mulher definem um recinto protegido. O movimento de cada um dirige-se primariamente ao outro, mas esse mesmo gesto de amor (espiritual, à distância) cria o lugar em que a mulher coloca, com a outra mão, o fruto simbólico do amor. Por isso o escultor chamou à composição «Hino do Amor».
Mas também chamou à escultura «Adão e Eva», sugerindo a responsabilidade do ser humano. Quando não se vigia, mesmo no Paraíso ideal, o mal pode infiltrar-se e ferir o amor.
Não tenho culpa. Estas esculturas não são para descrever. Quem quiser ver Canto da Maia e não puder ir proximamente a Ponta Delgada, pode ir à Gulbenkian, ou ao Museu Soares dos Reis no Porto, ou ao Museu de Arte Contemporânea em Lisboa. Mas o melhor é mesmo fazer uma viagem aos Açores.
José Maria C.S. André
«Correio dos Açores», «Verdadeiro Olhar», «ABC Portuguese Canadian Newspaper», «Spe Deus»
21-VI-2015
21-VI-2015
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