A Bélgica legalizou a eutanásia infantil. Vai ser possível a uma criança doente decidir que quer falecer. Julgo que a palavra de que o leitor está à procura é “inveja”. Aposto que nenhum pai belga foi obrigado a ter este diálogo com a filha:
— Vai para o banho.
— Não quero! Odeio banho! Odeio-te!
Passada meia hora:
— Sai do banho.
— Não quero! Adoro banho! Odeio-te!
Na Bélgica isto não sucede. E não é só porque os belgas têm uma relação bissexta com a higiene. É também porque, aparentemente, a volubilidade infantil não é uma característica das crianças belgas. Pelos vistos, os belgas conseguem fazer com que uma criança tome decisões finais sobre assuntos de relativa importância. Tenho inveja dos pais belgas. Principalmente no Natal. Crianças que têm a capacidade de se decidirem pela eutanásia, de certeza que não fazem uma birra no chão do Toys’R’us por não conseguirem escolher um presente.
Deve ter que ver com a maturidade específica do povo belga. É espantoso que seja mais fácil explicar a uma criança de Bruxelas que talvez seja boa ideia falecer do que a uma criança de Lisboa que é essencial não mastigar de boca aberta.
(A maturidade das crianças belgas é um facto historicamente comprovado. Tanto que, quando apareceu na Bélgica uma criança que se comportava infantilmente e se punha toda nua a fazer xixi para o ar, acharam tão divertido que lhe construíram uma estátua.)
Também não se pode excluir a hipótese de os belgas terem feito uma descoberta que os coloca na vanguarda da pedagogia. Hoje em dia é difícil punir uma criança. Se queremos proibir-lhes qualquer coisa, é complicado encontrar algo que efectivamente as chateie. Elas têm tudo: se tirarmos a Playstation, têm a Wii; se tirarmos os desenhos animados, têm o tablet; se tirarmos o telemóvel, têm iPod. Talvez a eutanásia seja a resposta, a chantagem que funciona mesmo. É que a eutanásia tem tudo para ser cobiçada: as crianças gostam de ser únicas a ter um brinquedo e é improvável haver outro menino na escola deles com eutanásia.
— Pai, quero uma eutanásia!
— Mas tu sabes o que é eutanásia?
— Não. Mas sei que mais ninguém tem. O António disse que ia ter, mas entretanto deixou de ir à escola.
Bem-aventurada a mãe belga que agora pode dizer: “Menina, ou comes a sopa toda ou não há eutanásia para ninguém!” Ou: “Eutanásia? Com essas notas?”
Agora, tirando a Bélgica e as suas bizarras crianças crescidas, isto da eutanásia não vai funcionar lá muito bem noutros países. Ou os petizes são muito jovens, susceptíveis de serem manipulados pelos elaborados truques retóricos dos adultos (i.e., a oferta de uma bolacha de chocolate); ou são mais velhos, naquela fase da adolescência em que qualquer pergunta tem como resposta um enfadado “tanto faz”.
Pessoalmente, não me vejo a usar a eutanásia como ferramenta. Em termos de educação, sou um liberal-zombeteiro didáctico, o que significa que deixo a criança tomar as suas próprias decisões para, quando elas se revelam em toda a sua estupidez, escarnecer: “Vês? Eu não disse? Quem é que tinha razão?” Lamentavelmente, a eutanásia não permite essa vanglória sobre a parva opção juvenil. De que me serve deixá-la escolher mal, se depois não posso fazer pirraça?
José Diogo Quintela in 'Público' online AQUI
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