Ajudar o próximo e melhorar a nossa formação (JPR) |
« O homem deve imitar Deus quando trabalha, assim como quando descansa, dado que o mesmo Deus quis apresentar-lhe a própria obra criadora sob a forma de trabalho e de descanso» [1].
Estas palavras de João Paulo II fazem referência ao relato da Criação, primeiro «evangelho do trabalho» [2]. O autor sagrado, depois de narrar, como Deus, durante seis dias dá existência ao céu, à terra e a todas as outras coisas, conclui:" Terminou Deus no sétimo dia a obra que tinha feito e descansou no sétimo dia de toda a obra que tinha hecho. Deus então abençoou e santificou o sétimo dia, porque foi nesse dia que Deus descansou de todo o seu trabalho como criador" [3].
A partir de então, cabe ao homem aperfeiçoar essa obra divina mediante o seu trabalho [4], sem esquecer que também ele é criatura, fruto do amor de Deus e chamado à união definitiva com Ele. O descanso do sétimo dia, que Deus santifica, tem para o homem um profundo significado: além de uma necessidade, é tempo apropriado para reconhecer Deus como autor e Senhor de tudo o que foi criado e é uma antecipação do descanso e alegria definitivos na Ressurreição.
Uma vida que decorresse submergida nos afãs do trabalho, sem considerar o fundamento do qual tudo provém e o sentido – o fim – para que tudo tende, «correria o risco de esquecer que Deus é o Criador, de Quem tudo depende» [5], e para Quem tudo se orienta.
Fazer tudo para a glória de Deus – a unidade de vida – é viver com fundamento sólido e com sentido e fim sobrenaturais, é descansar na filiação divina dentro do próprio trabalho e converter o descanso em serviço a Deus e aos outros.
Na Obra, tudo é meio de santidade: o trabalho e o descanso; a vida de piedade e o convívio afectuoso com todos; a alegria e a dor. Numa palavra, há uma possibilidade de santificação em cada minuto da nossa vida: em tudo devemos amar e cumprir a Vontade de Deus[6].
SITUAR O TRABALHO E O DESCANSO
O trabalho é um dom de Deus e a própria criação é já uma chamada [7]: o facto de que Deus chame à existência uma criatura livre, e a crie por amor, traz implícita uma vocação a corresponder.
O trabalho é âmbito de encontro entre a liberdade criadora de Deus e a liberdade do homem, lugar de resposta e, portanto, de oração feita obra e de contemplação. Vendo a mão de Deus em todas as coisas, e especialmente nos outros homens e em si mesma, a criatura esforça-se por levar tudo à perfeição querida por Deus, procurando assim a sua própria plenitude.
O convite divino a trabalhar é consequência de um coração de Pai que quer contar com a colaboração dos seus filhos. O esforço que essa tarefa trás consigo há-de ser humilde, filial, resposta de amor e não iniciativa autónoma que procure a glória própria.
Poder-se-ia aplicar ao trabalho aquela imagem do nosso Padre, em que uma criança se aproxima de um grupo de pescadores que puxavam a rede com enorme força: agarrou a cordacom as mãozinhas e começou a puxar com evidente falta de habilidade. Aqueles pescadores rudes, nada refinados, devem ter sentido o coração estremecer e permitiram que aquele pequeno colaborasse; não o afastaram, apesar de ele estorvar em vez de ajudar[8].
Deus conhece bem as suas criaturas. Ao mesmo tempo que nos convida a colaborar com Ele, sabe que a nossa natureza é frágil e quebradiça. A chamada divina a trabalhar inclui a necessidade do descanso. Como se deduz do relato da criação, «a alternância entre trabalho e descanso, própria da natureza humana, é querida pelo próprio Deus» [9].
Esta necessidade parte, em primeiro lugar, da limitação física. Sobrestimar as próprias forças ou um espírito de sacrifício mal entendido poderiam dar lugar a danos na saúde que Deus não quer e que, a longo prazo, condicionariam a disponibilidade para O servir. No entanto, em determinados momentos, o Senhor pode pedir-nos maior desgaste, situações que exijam um desprendimento heróico, até da própria saúde, para cumprir a Sua Vontade.
D. Álvaro, ao sair à rua com quarenta graus de febre para procurar meios económicos, quando se construíam os edifícios de Villa Tevere, é um exemplo desse amor sem condições.
Mas, pelo mesmo motivo – servir a Deus – é bom dedicar o tempo necessário ao descanso, como o nosso Padre indicou em numerosas ocasiões: Parece-me, por isso, oportuno recordar-vos a conveniência do descanso. Se chegasse a doença, recebê-la-íamos com alegria, como vinda da mão de Deus; mas não podemos provocá-la com a nossa imprudência: somos homens, e necessitamos de repor as forças do nosso corpo[10].
Seria uma pena que, podendo descansar, diminuíssem as forças por falta de repouso. Sabendo que somos de Deus e que não nos pertencemos, temos a responsabilidade de cuidar da saúde, de estar em condições de dar a Deus toda a glória.
O descanso é também uma necessidade espiritual, «é uma coisa sagrada, constituindo a condição necessária para o homem se subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e retomar consciência de que tudo é obra de Deus » [11].
Sair das exigentes solicitações – prazos, projetos, riscos, incertezas – que o trabalho profissional traz consigo, permite o sossego necessário para redimensionar a existência e a própria tarefa.
Saber desapegar-se periodicamente dessas exigências supõe, por vezes, um ato de abandono no Senhor e contribui para relativizar a importância material do que fazemos, «persuadidos de que as vitórias do homem são sinal da grandeza de Deus e consequência do Seu inefável desígnio» [12].
Trabalhamos por fidelidade, por amor, para que Deus se sirva – quis servir-se – da nossa entrega, sem nos atribuirmos a eficácia: não é nada, nem aquele que planta, nem aquele que rega, mas Deus, que dá o crescimento [13]. A interrupção das tarefas habituais ajuda a valorizar a desproporção entre o nosso contributo pessoal e os frutos de santidade e apostolado que produz.
Se somos objetivos, com a objetividade que a fé e o convívio com o Senhor dão, veremos que também o esforço que pomos no trabalho é dom de Deus que apoia, guia e impulsiona. O trabalho profissional – no laboratório, na fábrica, na oficina, no campo, no lar de família – sendo o eixo da santidade e a atividade que de algum modo estrutura a existência, não deve absorver outras facetas igualmente importantes.
«Portanto, se após seis dias de trabalho o homem procura um tempo para relaxar e para dar mais atenção a outros aspetos da própria vida, isso corresponde a uma autêntica necessidade, em plena harmonia com a perspectiva da mensagem evangélica» [14].
Dedicar tempo à família, aos amigos; empregá-lo para melhorar a formação e a cultura e para conviver com o Senhor com mais calma, são também excelentes ocasiões para procurar a santidade em que «as preocupações e as tarefas quotidianas podem reencontrar a sua justa dimensão: as coisas materiais pelas quais nos afadigamos dão lugar aos valores do espírito; as pessoas com que convivemos recuperam, no encontro e no diálogo mais sereno, o seu verdadeiro rosto» [15].
O descanso responde portanto, também, à necessidade de vigiar, de parar para retificar o rumo para pôr Deus no centro e descobri-Lo nos outros. Os Convívios, um passeio com a família, os tempos de oração, as tertúlias, os tempos de retiro..., cada um destes exemplos, a seu modo, está em consonância com essa necessidade e contém notas essenciais do que significa descansar com sentido.
Repor forças no corpo e no espírito; uma mudança de atividade – o descanso não é não fazer nada – que se distancia das preocupações diárias, situando-as na sua justa medida.
Isto é particularmente importante em ambientes onde uma competitividade desmedida motivada muitas vezes pelo desejo de glória humana, tende a absorver tal quantidade de tempo e de energias que torna difícil atender outras obrigações. O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus descansou no sétimo dia (Ex 31, 17), o homem deve também descansar e deixar que os outros, sobretudo os pobres, «tomem fôlego» [16].
«Nesta perspectiva, o descanso dominical e festivo adquire uma dimensão «profética», defendendo não só o primado absoluto de Deus, mas também o primado e a dignidade da pessoa sobre as exigências da vida social e económica, e antecipando de certo modo os «novos céus» e a «nova terra», onde a libertação da escravidão das necessidades será definitiva e total. Em resumo, o dia do Senhor, na sua forma mais autêntica, torna-se também o dia do homem» [17].
ANTICIPAÇÃO DA RESSURREIÇÃO
Com a plenitude da Revelação, em Cristo, o trabalho e o descanso permitem uma compreensão mais plena, inseridos na dimensão salvadora; o descanso como antecipação da Ressurreição ilumina a fadiga do trabalho como união à Cruz de Cristo.
«Meu Pai opera continuamente... » (Jo5, 17): opera com a força criadora, sustentando na existência o mundo que chamou do nada ao ser; e opera com a força salvífica nos corações dos homens, que desde o princípio destinou para o «repouso» (Hb 4, 1; 9-16) em união consigo mesmo, na «casa do Pai (Jo 14, 2)» [18].
Assim como em Cristo, Cruz e Ressurreição formam uma unidade inseparável, mesmo sendo dois acontecimentos históricos separados, analogamente, o trabalho e o descanso devem estar integrados em unidade vital. Por isso, independentemente da sucessão temporal, da mudança de ocupação que é o descanso em relação ao trabalho, descansa-se no Senhor, descansa-se na filiação divina.
Esta nova perspetiva coloca o descanso junto do próprio trabalho, como uma tarefa dependente, sem retirar ao trabalho o que tem de esforço e de fadiga. O que fica excluído é outro género de cansaço bem diferente, que deriva de trabalhar pelo orgulho de procurar como meta suprema a afirmação pessoal, ou de trabalhar apenas por motivos humanos. Esse cansaço, Deus não o quer: É inútil levantar-vos antes da aurora, e atrasar até alta noite o vosso descanso, para comer o pão de um duro trabalho [19].
Descansai, filhos, na filiação divina. Deus é um Pai, cheio de ternura, de amor infinito. Chamai-lhe Pai muitas vezes e dizei-lhe – a sós – que o amais, que o amais muitíssimo: que sentis o orgulho e a força de ser Seus filhos[20].
Essa força de ser filhos de Deus conduz a um trabalho mais sacrificado, a uma maior abnegação, até abraçar a Cruz de cada dia com a força do Espírito Santo, para cumprir aí a Vontade de Deus, sem desfalecer; permite trabalhar sem descanso, porque o cansaço do trabalho passa a ser redentor. Então, vale a pena empenhar-se com todas as energias na tarefa porque já não se estão apenas a obter frutos materiais, mas está-se a levar o mundo a Cristo.
Quando se trabalha com essa disposição, além do esforço humano de fazer frutificar os talentos, aparece o fruto sobrenatural de paz e alegria: Muito bem, servo bom e fiel; porque foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo do teu Senhor[21], e a fecundidade apostólica: Está bem, servo bom; porque foste fiel no pouco, serás governador de dez cidades [22].
Portanto, o trabalho «não pode consistir apenas no exercício das forças humanas na acção exterior: ele tem de deixar um espaço interior, no qual o homem, tornando-se cada vez mais aquilo que deve ser segundo a vontade de Deus, se prepara para aquele «repouso» que o Senhor reserva para os seus servos e amigos» [23].
No episódio da Transfiguração narra-se que seis dias depois de anunciar a Sua Paixão e morte,tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os à parte a um monte alto, e transfigurou-Se diante deles [24]. São Tomás, comentando esta passagem, relaciona o sétimo dia no qual Deus descansou da obra criadora com o sétimo dia – seis dias depois – em que o Senhor se manifestou aos seus discípulos para lhes mostrar uma antecipação da Ressurreição gloriosa, para que, levantando o olhar, não se ficassem numa visão terrena [25]. Os três discípulos, admirados diante da contemplação da glória, diante da presença do fim a que estão chamados, expressam a alegria de descansar no Senhor e com o Senhor: que bom é estarmos aqui; se queres farei aqui três tendas [26] – afirma Pedro – vivendo antecipadamente a alegria e a paz do Céu. Esse momento não se iria ainda perpetuar. No entanto, a luz e a paz do Tabor serão força para continuar o caminho que, passando pela Cruz, conduz à Ressurreição.
Também nós encontramos descanso no abandono filial; a paz e a serenidade de quem sabe que por trás do cansaço, das dificuldades e das preocupações próprias da nossa condição terrena, há um Pai eterno e omnipotente, que nos sustém. Trabalhar com visão de eternidade evita preocupações inúteis e desassossegos infecundos e anima qualquer tarefa com o desejo de ver definitivamente o rosto de Cristo.
Santificar o descanso, e especialmente o Domingo – paradigma do descanso cristão que celebra a Ressurreição do Senhor – ajuda a descobrir o sentido de eternidade e contribui para renovar a esperança: «o domingo significa o dia verdaeiramente único que virá após o tempo actual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho» [27].
SANTIFICAR O DESCANSO E AS DIVERSÕES
Os primeiros cristãos viviam a sua fé num ambiente hedonista e pagão. Desde o princípio, se aperceberam que não se pode compatibilizar o seguir a Cristo com formas de descansar e dedivertir-se que pervertem e desumanizam.
Santo Agostinho, em relação a espetáculos deste tipo, dizia numa homilia: «Nega-te a ir, reprimindo no teu coração a concupiscência temporal e mantém uma atitude forte e perseverante» [28]. Não é estranho que se repitam agora, em ambientes neopagãos, manifestações clamorosas dessa indigência espiritual.
É preciso discernir «entre os meios da cultura humana e as diversões que a sociedade proporciona, aqueles que estão mais de acordo com uma vida segundo os preceitos do Evangelho» [29].
Não se trata de permanecer num ambiente fechado. É necessário pôr-se a caminho, com iniciativa, com valentia, com verdadeiro amor às almas, de modo que cada um de nós se esforce para transmitir nos ambientes sociais o sentido e o gozo cristão do descanso. Como nos recordava D. Álvaro, é um trabalho importante para cada um a criação de lugares em que impere um tom cristão nas relações sociais, nas diversões, no aproveitamento do tempo livre [30].
Jesus, Maria e José mostram-nos como na vida familiar há tempo para o descanso e para a festa: iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa [31]. A família, espaço espiritual, é uma escola para aprender a descansar pensando nos outros. Para isso convém programar bem as férias, empregar os tempos de descanso para estar com os filhos, para os conhecer bem e conversar com eles, para brincar com os mais pequenos...
É preciso aprender a estar bem em família, sem cair na solução fácil de deixar os mais jovens sozinhos à frente da televisão ou a navegar na Internet. Neste sentido, selecionar na televisão os programas mais interessantes e vê-los junto dos filhos, ou ensinar a utilizar o computador com sobriedade, sabendo em cada momento para que se usa – principalmente como ferramenta de trabalho - são acções que adquirem hoje em dia uma importância nada pequena.
O Evangelho de São Lucas mostra também como o Menino Jesus, movido pelo Espírito Santo, aproveita a ida a Jerusalém com o motivo da festa da Páscoa para iluminar os homens: Os que O ouviam ficavam admirados da Sua sabedoria e das suas respostas [32].
O descanso não é uma interrupção da atividade apostólica. Pelo contrário, abre novas possibilidades, novas ocasiões de aprofundar na amizade e de conhecer pessoas e ambientes onde levar a luz de Cristo.
O Concílio Vaticano II encoraja todos os cristãos para esta imponente tarefa: cooperar «para que as manifestações e atividades culturais coletivas, próprias do nosso tempo, se humanizem e se impregnem de espírito cristão» [33].
A Igreja está necessitada de pessoas que atuem, com mentalidade laical, neste campo da nova evangelização. Urge recristianizar as festas e costumes populares. – Urge evitar que os espetáculos públicos se vejam nesta disjuntiva: ou piegas ou pagãos. Pede ao Senhor que haja quem trabalhe nessa urgente tarefa, a que podemos chamar “apostolado da diversão” [34].
F. J. López Díaz – C. Ruiz Montoya
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1. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
2. Ibid.
3. Gn 2, 1-3.
4. Cfr. Catecismo de la Iglesia Católica, n. 307.
5. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
6. A sós com Deus, n. 29.
7. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2566.
8. Amigos de Deus, n.14.
9. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
10. Do nosso Padre, Carta 15-X-1948, n. 14.
11. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
12. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
13. 1 Cor 3, 7.
14. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 67.
15. Ibid.
16. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2172.
17. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 68.
18. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
19. Sal 127 [126], 2.
20. A sóscom Deus, n. 221.
21. Mt 25, 21 e 23.
22. Lc 19, 17.
23. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
24. Mt 17, 1-4.
25. Cfr. São Tomás, In Matth. Ev., XVII, 1.
26. Mt 17, 4.
27. Cfr. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 26.
28. Santo Agostinho, Sermo 88, 17.
29. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 68.
30. D. Álvaro, Cartas de Família (1), n. 386.
31. Lc 2, 41.
32. Lc 2, 47.
33. Conc. Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 61.
34. Caminho, n. 975.
O trabalho é um dom de Deus e a própria criação é já uma chamada [7]: o facto de que Deus chame à existência uma criatura livre, e a crie por amor, traz implícita uma vocação a corresponder.
O trabalho é âmbito de encontro entre a liberdade criadora de Deus e a liberdade do homem, lugar de resposta e, portanto, de oração feita obra e de contemplação. Vendo a mão de Deus em todas as coisas, e especialmente nos outros homens e em si mesma, a criatura esforça-se por levar tudo à perfeição querida por Deus, procurando assim a sua própria plenitude.
O convite divino a trabalhar é consequência de um coração de Pai que quer contar com a colaboração dos seus filhos. O esforço que essa tarefa trás consigo há-de ser humilde, filial, resposta de amor e não iniciativa autónoma que procure a glória própria.
Poder-se-ia aplicar ao trabalho aquela imagem do nosso Padre, em que uma criança se aproxima de um grupo de pescadores que puxavam a rede com enorme força: agarrou a cordacom as mãozinhas e começou a puxar com evidente falta de habilidade. Aqueles pescadores rudes, nada refinados, devem ter sentido o coração estremecer e permitiram que aquele pequeno colaborasse; não o afastaram, apesar de ele estorvar em vez de ajudar[8].
Deus conhece bem as suas criaturas. Ao mesmo tempo que nos convida a colaborar com Ele, sabe que a nossa natureza é frágil e quebradiça. A chamada divina a trabalhar inclui a necessidade do descanso. Como se deduz do relato da criação, «a alternância entre trabalho e descanso, própria da natureza humana, é querida pelo próprio Deus» [9].
Esta necessidade parte, em primeiro lugar, da limitação física. Sobrestimar as próprias forças ou um espírito de sacrifício mal entendido poderiam dar lugar a danos na saúde que Deus não quer e que, a longo prazo, condicionariam a disponibilidade para O servir. No entanto, em determinados momentos, o Senhor pode pedir-nos maior desgaste, situações que exijam um desprendimento heróico, até da própria saúde, para cumprir a Sua Vontade.
D. Álvaro, ao sair à rua com quarenta graus de febre para procurar meios económicos, quando se construíam os edifícios de Villa Tevere, é um exemplo desse amor sem condições.
Mas, pelo mesmo motivo – servir a Deus – é bom dedicar o tempo necessário ao descanso, como o nosso Padre indicou em numerosas ocasiões: Parece-me, por isso, oportuno recordar-vos a conveniência do descanso. Se chegasse a doença, recebê-la-íamos com alegria, como vinda da mão de Deus; mas não podemos provocá-la com a nossa imprudência: somos homens, e necessitamos de repor as forças do nosso corpo[10].
Seria uma pena que, podendo descansar, diminuíssem as forças por falta de repouso. Sabendo que somos de Deus e que não nos pertencemos, temos a responsabilidade de cuidar da saúde, de estar em condições de dar a Deus toda a glória.
O descanso é também uma necessidade espiritual, «é uma coisa sagrada, constituindo a condição necessária para o homem se subtrair ao ciclo, por vezes excessivamente absorvente, dos afazeres terrenos e retomar consciência de que tudo é obra de Deus » [11].
Sair das exigentes solicitações – prazos, projetos, riscos, incertezas – que o trabalho profissional traz consigo, permite o sossego necessário para redimensionar a existência e a própria tarefa.
Saber desapegar-se periodicamente dessas exigências supõe, por vezes, um ato de abandono no Senhor e contribui para relativizar a importância material do que fazemos, «persuadidos de que as vitórias do homem são sinal da grandeza de Deus e consequência do Seu inefável desígnio» [12].
Trabalhamos por fidelidade, por amor, para que Deus se sirva – quis servir-se – da nossa entrega, sem nos atribuirmos a eficácia: não é nada, nem aquele que planta, nem aquele que rega, mas Deus, que dá o crescimento [13]. A interrupção das tarefas habituais ajuda a valorizar a desproporção entre o nosso contributo pessoal e os frutos de santidade e apostolado que produz.
Se somos objetivos, com a objetividade que a fé e o convívio com o Senhor dão, veremos que também o esforço que pomos no trabalho é dom de Deus que apoia, guia e impulsiona. O trabalho profissional – no laboratório, na fábrica, na oficina, no campo, no lar de família – sendo o eixo da santidade e a atividade que de algum modo estrutura a existência, não deve absorver outras facetas igualmente importantes.
«Portanto, se após seis dias de trabalho o homem procura um tempo para relaxar e para dar mais atenção a outros aspetos da própria vida, isso corresponde a uma autêntica necessidade, em plena harmonia com a perspectiva da mensagem evangélica» [14].
Dedicar tempo à família, aos amigos; empregá-lo para melhorar a formação e a cultura e para conviver com o Senhor com mais calma, são também excelentes ocasiões para procurar a santidade em que «as preocupações e as tarefas quotidianas podem reencontrar a sua justa dimensão: as coisas materiais pelas quais nos afadigamos dão lugar aos valores do espírito; as pessoas com que convivemos recuperam, no encontro e no diálogo mais sereno, o seu verdadeiro rosto» [15].
O descanso responde portanto, também, à necessidade de vigiar, de parar para retificar o rumo para pôr Deus no centro e descobri-Lo nos outros. Os Convívios, um passeio com a família, os tempos de oração, as tertúlias, os tempos de retiro..., cada um destes exemplos, a seu modo, está em consonância com essa necessidade e contém notas essenciais do que significa descansar com sentido.
Repor forças no corpo e no espírito; uma mudança de atividade – o descanso não é não fazer nada – que se distancia das preocupações diárias, situando-as na sua justa medida.
Isto é particularmente importante em ambientes onde uma competitividade desmedida motivada muitas vezes pelo desejo de glória humana, tende a absorver tal quantidade de tempo e de energias que torna difícil atender outras obrigações. O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus descansou no sétimo dia (Ex 31, 17), o homem deve também descansar e deixar que os outros, sobretudo os pobres, «tomem fôlego» [16].
«Nesta perspectiva, o descanso dominical e festivo adquire uma dimensão «profética», defendendo não só o primado absoluto de Deus, mas também o primado e a dignidade da pessoa sobre as exigências da vida social e económica, e antecipando de certo modo os «novos céus» e a «nova terra», onde a libertação da escravidão das necessidades será definitiva e total. Em resumo, o dia do Senhor, na sua forma mais autêntica, torna-se também o dia do homem» [17].
ANTICIPAÇÃO DA RESSURREIÇÃO
Com a plenitude da Revelação, em Cristo, o trabalho e o descanso permitem uma compreensão mais plena, inseridos na dimensão salvadora; o descanso como antecipação da Ressurreição ilumina a fadiga do trabalho como união à Cruz de Cristo.
«Meu Pai opera continuamente... » (Jo5, 17): opera com a força criadora, sustentando na existência o mundo que chamou do nada ao ser; e opera com a força salvífica nos corações dos homens, que desde o princípio destinou para o «repouso» (Hb 4, 1; 9-16) em união consigo mesmo, na «casa do Pai (Jo 14, 2)» [18].
Assim como em Cristo, Cruz e Ressurreição formam uma unidade inseparável, mesmo sendo dois acontecimentos históricos separados, analogamente, o trabalho e o descanso devem estar integrados em unidade vital. Por isso, independentemente da sucessão temporal, da mudança de ocupação que é o descanso em relação ao trabalho, descansa-se no Senhor, descansa-se na filiação divina.
Esta nova perspetiva coloca o descanso junto do próprio trabalho, como uma tarefa dependente, sem retirar ao trabalho o que tem de esforço e de fadiga. O que fica excluído é outro género de cansaço bem diferente, que deriva de trabalhar pelo orgulho de procurar como meta suprema a afirmação pessoal, ou de trabalhar apenas por motivos humanos. Esse cansaço, Deus não o quer: É inútil levantar-vos antes da aurora, e atrasar até alta noite o vosso descanso, para comer o pão de um duro trabalho [19].
Descansai, filhos, na filiação divina. Deus é um Pai, cheio de ternura, de amor infinito. Chamai-lhe Pai muitas vezes e dizei-lhe – a sós – que o amais, que o amais muitíssimo: que sentis o orgulho e a força de ser Seus filhos[20].
Essa força de ser filhos de Deus conduz a um trabalho mais sacrificado, a uma maior abnegação, até abraçar a Cruz de cada dia com a força do Espírito Santo, para cumprir aí a Vontade de Deus, sem desfalecer; permite trabalhar sem descanso, porque o cansaço do trabalho passa a ser redentor. Então, vale a pena empenhar-se com todas as energias na tarefa porque já não se estão apenas a obter frutos materiais, mas está-se a levar o mundo a Cristo.
Quando se trabalha com essa disposição, além do esforço humano de fazer frutificar os talentos, aparece o fruto sobrenatural de paz e alegria: Muito bem, servo bom e fiel; porque foste fiel em poucas coisas, dar-te-ei a intendência de muitas; entra no gozo do teu Senhor[21], e a fecundidade apostólica: Está bem, servo bom; porque foste fiel no pouco, serás governador de dez cidades [22].
Portanto, o trabalho «não pode consistir apenas no exercício das forças humanas na acção exterior: ele tem de deixar um espaço interior, no qual o homem, tornando-se cada vez mais aquilo que deve ser segundo a vontade de Deus, se prepara para aquele «repouso» que o Senhor reserva para os seus servos e amigos» [23].
No episódio da Transfiguração narra-se que seis dias depois de anunciar a Sua Paixão e morte,tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e levou-os à parte a um monte alto, e transfigurou-Se diante deles [24]. São Tomás, comentando esta passagem, relaciona o sétimo dia no qual Deus descansou da obra criadora com o sétimo dia – seis dias depois – em que o Senhor se manifestou aos seus discípulos para lhes mostrar uma antecipação da Ressurreição gloriosa, para que, levantando o olhar, não se ficassem numa visão terrena [25]. Os três discípulos, admirados diante da contemplação da glória, diante da presença do fim a que estão chamados, expressam a alegria de descansar no Senhor e com o Senhor: que bom é estarmos aqui; se queres farei aqui três tendas [26] – afirma Pedro – vivendo antecipadamente a alegria e a paz do Céu. Esse momento não se iria ainda perpetuar. No entanto, a luz e a paz do Tabor serão força para continuar o caminho que, passando pela Cruz, conduz à Ressurreição.
Também nós encontramos descanso no abandono filial; a paz e a serenidade de quem sabe que por trás do cansaço, das dificuldades e das preocupações próprias da nossa condição terrena, há um Pai eterno e omnipotente, que nos sustém. Trabalhar com visão de eternidade evita preocupações inúteis e desassossegos infecundos e anima qualquer tarefa com o desejo de ver definitivamente o rosto de Cristo.
Santificar o descanso, e especialmente o Domingo – paradigma do descanso cristão que celebra a Ressurreição do Senhor – ajuda a descobrir o sentido de eternidade e contribui para renovar a esperança: «o domingo significa o dia verdaeiramente único que virá após o tempo actual, o dia sem fim, que não conhecerá tarde nem manhã, o século imorredouro que não poderá envelhecer; o domingo é o prenúncio incessante da vida sem fim, que reanima a esperança dos cristãos e os estimula no seu caminho» [27].
SANTIFICAR O DESCANSO E AS DIVERSÕES
Os primeiros cristãos viviam a sua fé num ambiente hedonista e pagão. Desde o princípio, se aperceberam que não se pode compatibilizar o seguir a Cristo com formas de descansar e dedivertir-se que pervertem e desumanizam.
Santo Agostinho, em relação a espetáculos deste tipo, dizia numa homilia: «Nega-te a ir, reprimindo no teu coração a concupiscência temporal e mantém uma atitude forte e perseverante» [28]. Não é estranho que se repitam agora, em ambientes neopagãos, manifestações clamorosas dessa indigência espiritual.
É preciso discernir «entre os meios da cultura humana e as diversões que a sociedade proporciona, aqueles que estão mais de acordo com uma vida segundo os preceitos do Evangelho» [29].
Não se trata de permanecer num ambiente fechado. É necessário pôr-se a caminho, com iniciativa, com valentia, com verdadeiro amor às almas, de modo que cada um de nós se esforce para transmitir nos ambientes sociais o sentido e o gozo cristão do descanso. Como nos recordava D. Álvaro, é um trabalho importante para cada um a criação de lugares em que impere um tom cristão nas relações sociais, nas diversões, no aproveitamento do tempo livre [30].
Jesus, Maria e José mostram-nos como na vida familiar há tempo para o descanso e para a festa: iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa [31]. A família, espaço espiritual, é uma escola para aprender a descansar pensando nos outros. Para isso convém programar bem as férias, empregar os tempos de descanso para estar com os filhos, para os conhecer bem e conversar com eles, para brincar com os mais pequenos...
É preciso aprender a estar bem em família, sem cair na solução fácil de deixar os mais jovens sozinhos à frente da televisão ou a navegar na Internet. Neste sentido, selecionar na televisão os programas mais interessantes e vê-los junto dos filhos, ou ensinar a utilizar o computador com sobriedade, sabendo em cada momento para que se usa – principalmente como ferramenta de trabalho - são acções que adquirem hoje em dia uma importância nada pequena.
O Evangelho de São Lucas mostra também como o Menino Jesus, movido pelo Espírito Santo, aproveita a ida a Jerusalém com o motivo da festa da Páscoa para iluminar os homens: Os que O ouviam ficavam admirados da Sua sabedoria e das suas respostas [32].
O descanso não é uma interrupção da atividade apostólica. Pelo contrário, abre novas possibilidades, novas ocasiões de aprofundar na amizade e de conhecer pessoas e ambientes onde levar a luz de Cristo.
O Concílio Vaticano II encoraja todos os cristãos para esta imponente tarefa: cooperar «para que as manifestações e atividades culturais coletivas, próprias do nosso tempo, se humanizem e se impregnem de espírito cristão» [33].
A Igreja está necessitada de pessoas que atuem, com mentalidade laical, neste campo da nova evangelização. Urge recristianizar as festas e costumes populares. – Urge evitar que os espetáculos públicos se vejam nesta disjuntiva: ou piegas ou pagãos. Pede ao Senhor que haja quem trabalhe nessa urgente tarefa, a que podemos chamar “apostolado da diversão” [34].
F. J. López Díaz – C. Ruiz Montoya
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1. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
2. Ibid.
3. Gn 2, 1-3.
4. Cfr. Catecismo de la Iglesia Católica, n. 307.
5. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
6. A sós com Deus, n. 29.
7. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2566.
8. Amigos de Deus, n.14.
9. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
10. Do nosso Padre, Carta 15-X-1948, n. 14.
11. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 65.
12. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
13. 1 Cor 3, 7.
14. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 67.
15. Ibid.
16. Cfr. Catecismo da Igreja Católica, n. 2172.
17. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 68.
18. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
19. Sal 127 [126], 2.
20. A sóscom Deus, n. 221.
21. Mt 25, 21 e 23.
22. Lc 19, 17.
23. João Paulo II, Litt. enc. Laborem exercens, 14-IX-1981, n. 25.
24. Mt 17, 1-4.
25. Cfr. São Tomás, In Matth. Ev., XVII, 1.
26. Mt 17, 4.
27. Cfr. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 26.
28. Santo Agostinho, Sermo 88, 17.
29. João Paulo II, Litt. apost. Dies Domini, 31-V-1998, n. 68.
30. D. Álvaro, Cartas de Família (1), n. 386.
31. Lc 2, 41.
32. Lc 2, 47.
33. Conc. Vaticano II, Const. past. Gaudium et spes, n. 61.
34. Caminho, n. 975.
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