- Entrei ontem num templo, ali ao pé da tua casa. Deve ser um estranho culto oriental da morte. Por todo o lado havia imagens de um cadáver pendurado numa trave.
- És um brincalhão! Então finalmente foste à minha igreja! E que tal?
- Foi horrível! Nunca mais lá volto. Tanta crueldade ali, à frente de todos!
- Viste alguém a matar alguém? Ontem foi domingo. Estava cheia de famílias indo serenamente à missa.
- Isso foi o que mais me assustou. Havia imensas crianças. Ali, sob aquele homem morto quase nu. Era muito pouco educativo. Chocante, mesmo. Devia ser proibido!
- Pareces os imperadores romanos, que achavam que os cristãos comiam criancinhas. Nós não somos sangrentos. O que viste foram pessoas pacíficas, celebrando a vida e alegria. Mas de certo modo tens razão. De facto os cristãos são os campeões mundiais da mudança de perspectiva. Vivemos a vida como todos, mas damos a tudo um sentido diferente. Vivemos aqui na Terra, mas com os olhos fixos no Céu. Vivemos no mundo, mas à sombra da cruz. Só assim é possível olhar para um homem sofrendo morte horrível e ver aí a causa da nossa felicidade. Concordo que é uma interpretação difícil, mas o Cristianismo é isso mesmo: reinterpretação da vida. Chama-se conversão.
- Queres dizer que aquilo significa o contrário do que é?
- Não. Significa precisamente o que é... e muito mais. Sabes que, para entender o sentido das imagens, é preciso conhecer-lhes o enredo, a envolvente. Foi isso que me disseste há dias, quando eu criticava a violência dos desenhos animados, que na altura defendias. Até disseste que ver sofrimento era bom para a educação...
- E qual pode ser o enredo que justifique uma barbaridade daquelas?
- Não sabes? É a história do dono do mundo, do Verbo de Deus, o criador de todas as coisas, e de como veio cá à Terra. Não veio visitar, mas viver mesmo. Mudou-se para cá e nasceu como um bebé, cresceu e foi carpinteiro. Depois, mataram-nO...
- ... porque não gostavam do mundo que Ele tinha feito. Parece-me razoável.
- Não, não foi isso. Eles gostavam tanto do mundo que queriam ficar com tudo, mandar em tudo, e não admitiam o dono legítimo. Por isso O mataram.
- Mas se Ele era mesmo o dono do mundo, porque razão não os impediu? Se tinha poder total, porque não se libertou?
- E fê-lo! Mas só o quis fazer três dias depois da morte. Suportou tudo até ao fim, até à última gota. Quando já não havia dúvidas que tudo estava consumado, quando eles achavam que tinham ganho e tudo acabara, então tudo recomeçou: Jesus ressuscitou. Venceu a morte, depois de ela ter vitória total, destruindo até ao fim; até depois do fim. Assim o Seu triunfo foi completo. Assim Ele mostrou poder pleno.
- Sim, eu conheço a tradição. Mas se a vitória é Cristo ressuscitado, saindo do túmulo, por que razão não a colocam no centro dos vossos templos? Um Cristo sorridente, glorioso, pleno de força seria muito mais atraente para nós, os não-crentes. E também para vós. Podem ser os campeões mundiais da mudança de perspectiva, como dizes, mas são péssimos em marketing e publicidade. Para vender são precisas imagens positivas. Não admira que o mundo se afaste da Igreja.
- Curioso que digas isso, quando o sucesso do Cristianismo nestes 2000 anos é muito superior ao dos teus produtos com marketing de qualidade e imagens positivas. Hoje mesmo, com o mundo afastado da Igreja como dizes, nenhuma outra instituição tem mais de mil milhões de aderentes e junta todos os domingos milhares de assembleias como a que viste. Quando se tem a verdade para dar, e não coisas para vender, as técnicas de comunicação são muito diferentes.
- Mas um cadáver pendurado!?
- Com Ele nos identificamos, porque Ele se identificou connosco. Cristo já ressuscitou e subiu ao Céu, mas eu ainda não. Um dia será o tempo de ver as Suas chagas jorrarem luz na glória. Agora ainda deitam sangue, como as minhas. Devias experimentar viver a vida à sombra da cruz. Converte o significado de tudo, dores e alegrias, pela presença viva de Cristo crucificado. Assim, até nos sofrimentos, somos felizes.
João César das Neves in DN online
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