Passamos a ocupar-nos do relativismo ético-social. Esta expressão significa não só que o relativismo atual tem muitas e evidentes manifestações no âmbito ético-social, mas também – e principalmente – que se apresenta como se estivesse justificado por razões ético-sociais. Isto explica tanto a facilidade com que se difunde quanto a escassa eficácia que têm certos intentos de combatê-lo.
Vejamos como Habermas formula essa justificação ético-social. Na sociedade atual encontramos um pluralismo de projetos de vida e de concepções do bem humano. Este fato nos propõe a seguinte alternativa: ou se renuncia à pretensão clássica de pronunciar juízos de valor sobre as diversas formas de vida que a experiência nos oferece ou, então, se há de renunciar a defender o ideal da tolerância, para o qual cada concepção da vida vale tanto como qualquer outra, ou, pelo menos, tem o mesmo direito a existir [1]. A mesma ideia é expressa de modo mais sintético por um conhecido jurista argentino: «Se a existência de razões para modos de vida não fosse utilizada para justificar o emprego da coação, a tolerância seria compatível com os compromissos mais profundos» [2]. A força deste tipo de raciocínio consiste em que, historicamente, tem ocorrido muitas vezes que nós, os homens, temos sacrificado violentamente a liberdade sobre o altar da verdade. Por isso, com um pouco de habilidade dialética não é difícil fazer passar por defesa da liberdade atitudes e concepções que, na realidade, caem no extremo oposto de sacrificar violentamente a verdade sobre o altar da liberdade.
Isto se vê claramente no modo em que a mentalidade relativista ataca os seus adversários. A quem afirme, por exemplo, que a heterossexualidade pertence à essência do casamento, não se lhe diz que essa tese é falsa, mas se lhe acusa de fundamentalismo religioso, de intolerância ou de espírito anti-moderno. Menos ainda se lhe dirá que a tese contrária é verdadeira, isto é, não se tentará demonstrar que a heterossexualidade nada tem a ver com o casamento. O característico da mentalidade relativista é pensar que esta tese é uma das teses que existe na sociedade juntamente com a sua contrária e, talvez, com outras mais, e que, em definitiva, todas têm igual valor e o mesmo direito a serem socialmente reconhecidas. Ninguém é obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, mas quem quiser fazê-lo deve poder fazê-lo. É o mesmo raciocínio com o qual se justifica a legalização do aborto e de outros atentados contra a vida de seres humanos que, pelo estado em que se encontram, não podem reivindicar ativamente os seus direitos, e cuja colaboração não é necessária a nós. Ninguém é obrigado a abortar, mas quem pensar que deve fazê-lo, deve poder fazê-lo.
Pode-se criticar a mentalidade relativista de muitas formas, conforme as circunstâncias. Mas o que nunca se deve fazer é reforçar, com as próprias palavras ou atitudes, aquilo que nessa mentalidade é mais persuasivo. Isto é: quem ataca o relativismo não pode dar a impressão de que está disposto a sacrificar a liberdade sobre o altar da verdade. Pelo contrário, deve-se demonstrar que se é muito sensível ao facto – de per si, bastante claro – que a passagem da perspectiva teórica à perspectiva ético-política tem de se fazer com muito cuidado. Uma coisa é ser inadmissível que aqueles que afirmam e aqueles que negam o mesmo tenham igualmente razão; outra coisa seria dizer que só os que pensam de um determinado modo podem desfrutar de todos os direitos civis de liberdade no âmbito do Estado. Deve-se evitar qualquer tipo de confusão entre o plano teórico e o plano ético-político: uma coisa é a relação da consciência com a verdade e outra, bem diferente, é a justiça para com as pessoas. Seguindo esta lógica, poder-se-á mostrar depois, de modo crível, que de uma afirmação que pretende dizer como as coisas são, isto é, de uma tese especulativa, só cabe dizer que é verdadeira ou falsa. As teses especulativas não são nem fortes nem débeis, nem privadas nem públicas, nem frias nem quentes, nem violentas nem pacíficas, nem autoritárias nem democráticas, nem progressistas nem conservadoras, nem boas nem más. São simplesmente verdadeiras ou falsas. O que pensaríamos de quem, ao expor uma demonstração matemática ou uma explicação médica, começasse a dizer que esses conhecimentos científicos têm só uma validade privada ou então que constituem uma teoria muito democrática? Se existe completa certeza de que um fármaco permite deter um tumor, trata-se, pura e simplesmente, de uma verdade médica, e não há nada mais a se acrescentar. Porém, é cabível qualificar uma forma de conceber os direitos civis ou a estrutura do Estado de autoritária ou de democrática, de justa ou de injusta, de conservadora ou de reformista. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que existem realidades, como o casamento, que são, a uma só vez, objeto de um conhecimento verdadeiro e de uma regulação prática segundo a justiça. Em caso de conflito, é preciso encontrar o modo de salvar tanto a verdade quanto a justiça para com as pessoas, para o qual se há de ter muito em conta – entre outras coisas – o aspecto “expressivo” ou educativo das leis civis [3].
No Discurso de 22 de dezembro de 2005, Bento XVI distinguiu com muita nitidez a relação da consciência com a verdade das relações de justiça entre as pessoas. Transcrevo um parágrafo muito significativo: «se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, tornar-se uma canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica para o nível metafísico. Assim, priva-se-lhe do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento.
Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que o homem deve fazer sua mediante um processo do convencimento. O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o património mais profundo da Igreja» [4].
Bento XVI dá mostras de um fino discernimento quando reconhece que no Concílio Vaticano II a Igreja fez seu um princípio ético-político do Estado moderno, e que o fez recuperando algo que pertencia à tradição católica. Sua posição está cheia de matizes. E, desse modo, esclarece que «quem pensava que com este “sim” fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a “abertura ao mundo” assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem». E se afirma que «não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem», diz também que é um bem fazer todo o possível por evitar as «contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza» [5]. E, assinalando o fundo do problema, acrescenta que «[o] passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas» [6].
O raciocínio de Bento XVI mostra um modo de fazer frente de modo justo e matizado a uma posição tremendamente insidiosa como é a do relativismo ético-social.
Vejamos como Habermas formula essa justificação ético-social. Na sociedade atual encontramos um pluralismo de projetos de vida e de concepções do bem humano. Este fato nos propõe a seguinte alternativa: ou se renuncia à pretensão clássica de pronunciar juízos de valor sobre as diversas formas de vida que a experiência nos oferece ou, então, se há de renunciar a defender o ideal da tolerância, para o qual cada concepção da vida vale tanto como qualquer outra, ou, pelo menos, tem o mesmo direito a existir [1]. A mesma ideia é expressa de modo mais sintético por um conhecido jurista argentino: «Se a existência de razões para modos de vida não fosse utilizada para justificar o emprego da coação, a tolerância seria compatível com os compromissos mais profundos» [2]. A força deste tipo de raciocínio consiste em que, historicamente, tem ocorrido muitas vezes que nós, os homens, temos sacrificado violentamente a liberdade sobre o altar da verdade. Por isso, com um pouco de habilidade dialética não é difícil fazer passar por defesa da liberdade atitudes e concepções que, na realidade, caem no extremo oposto de sacrificar violentamente a verdade sobre o altar da liberdade.
Isto se vê claramente no modo em que a mentalidade relativista ataca os seus adversários. A quem afirme, por exemplo, que a heterossexualidade pertence à essência do casamento, não se lhe diz que essa tese é falsa, mas se lhe acusa de fundamentalismo religioso, de intolerância ou de espírito anti-moderno. Menos ainda se lhe dirá que a tese contrária é verdadeira, isto é, não se tentará demonstrar que a heterossexualidade nada tem a ver com o casamento. O característico da mentalidade relativista é pensar que esta tese é uma das teses que existe na sociedade juntamente com a sua contrária e, talvez, com outras mais, e que, em definitiva, todas têm igual valor e o mesmo direito a serem socialmente reconhecidas. Ninguém é obrigado a se casar com uma pessoa do mesmo sexo, mas quem quiser fazê-lo deve poder fazê-lo. É o mesmo raciocínio com o qual se justifica a legalização do aborto e de outros atentados contra a vida de seres humanos que, pelo estado em que se encontram, não podem reivindicar ativamente os seus direitos, e cuja colaboração não é necessária a nós. Ninguém é obrigado a abortar, mas quem pensar que deve fazê-lo, deve poder fazê-lo.
Pode-se criticar a mentalidade relativista de muitas formas, conforme as circunstâncias. Mas o que nunca se deve fazer é reforçar, com as próprias palavras ou atitudes, aquilo que nessa mentalidade é mais persuasivo. Isto é: quem ataca o relativismo não pode dar a impressão de que está disposto a sacrificar a liberdade sobre o altar da verdade. Pelo contrário, deve-se demonstrar que se é muito sensível ao facto – de per si, bastante claro – que a passagem da perspectiva teórica à perspectiva ético-política tem de se fazer com muito cuidado. Uma coisa é ser inadmissível que aqueles que afirmam e aqueles que negam o mesmo tenham igualmente razão; outra coisa seria dizer que só os que pensam de um determinado modo podem desfrutar de todos os direitos civis de liberdade no âmbito do Estado. Deve-se evitar qualquer tipo de confusão entre o plano teórico e o plano ético-político: uma coisa é a relação da consciência com a verdade e outra, bem diferente, é a justiça para com as pessoas. Seguindo esta lógica, poder-se-á mostrar depois, de modo crível, que de uma afirmação que pretende dizer como as coisas são, isto é, de uma tese especulativa, só cabe dizer que é verdadeira ou falsa. As teses especulativas não são nem fortes nem débeis, nem privadas nem públicas, nem frias nem quentes, nem violentas nem pacíficas, nem autoritárias nem democráticas, nem progressistas nem conservadoras, nem boas nem más. São simplesmente verdadeiras ou falsas. O que pensaríamos de quem, ao expor uma demonstração matemática ou uma explicação médica, começasse a dizer que esses conhecimentos científicos têm só uma validade privada ou então que constituem uma teoria muito democrática? Se existe completa certeza de que um fármaco permite deter um tumor, trata-se, pura e simplesmente, de uma verdade médica, e não há nada mais a se acrescentar. Porém, é cabível qualificar uma forma de conceber os direitos civis ou a estrutura do Estado de autoritária ou de democrática, de justa ou de injusta, de conservadora ou de reformista. Ao mesmo tempo, é preciso recordar que existem realidades, como o casamento, que são, a uma só vez, objeto de um conhecimento verdadeiro e de uma regulação prática segundo a justiça. Em caso de conflito, é preciso encontrar o modo de salvar tanto a verdade quanto a justiça para com as pessoas, para o qual se há de ter muito em conta – entre outras coisas – o aspecto “expressivo” ou educativo das leis civis [3].
No Discurso de 22 de dezembro de 2005, Bento XVI distinguiu com muita nitidez a relação da consciência com a verdade das relações de justiça entre as pessoas. Transcrevo um parágrafo muito significativo: «se a liberdade religiosa for considerada como expressão da incapacidade do homem para encontrar a verdade e, consequentemente, tornar-se uma canonização do relativismo, então passa impropriamente de necessidade social e histórica para o nível metafísico. Assim, priva-se-lhe do seu verdadeiro sentido, com a consequência de não poder ser aceite por quem crê que o homem é capaz de conhecer a verdade de Deus e, com base na dignidade interior da verdade, está ligado a tal conhecimento.
Uma coisa completamente diversa é, porém, considerar a liberdade de religião como uma necessidade derivante da convivência humana, aliás, como uma consequência intrínseca da verdade que não pode ser imposta do exterior, mas que o homem deve fazer sua mediante um processo do convencimento. O Concílio Vaticano II, com o Decreto sobre a liberdade religiosa, reconhecendo e fazendo seu um princípio essencial do Estado moderno, recuperou novamente o património mais profundo da Igreja» [4].
Bento XVI dá mostras de um fino discernimento quando reconhece que no Concílio Vaticano II a Igreja fez seu um princípio ético-político do Estado moderno, e que o fez recuperando algo que pertencia à tradição católica. Sua posição está cheia de matizes. E, desse modo, esclarece que «quem pensava que com este “sim” fundamental para a era moderna se dissipassem todas as tensões e a “abertura ao mundo” assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, tinha subestimado as tensões internas e também as contradições da mesma era moderna; tinha subestimado a perigosa fragilidade da natureza humana que em todos os períodos da história e em cada constelação histórica é uma ameaça para o caminho do homem». E se afirma que «não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em relação aos perigos e aos erros do homem», diz também que é um bem fazer todo o possível por evitar as «contradições erróneas ou supérfluas, para apresentar a este nosso mundo a exigência do Evangelho em toda a sua grandeza e pureza» [5]. E, assinalando o fundo do problema, acrescenta que «[o] passo dado pelo Concílio em direção à era moderna, que de modo tão impreciso foi apresentado como “abertura ao mundo” pertence definitivamente ao perene problema da relação entre fé e razão, que se apresenta sempre de novas formas» [6].
O raciocínio de Bento XVI mostra um modo de fazer frente de modo justo e matizado a uma posição tremendamente insidiosa como é a do relativismo ético-social.
Ángel Rodríguez Luño, Doutor em Filosofia e Educação, e professor de Teologia Moral da Pontificia Università della Santa Croce (Roma)
[1] Cf. Habermas, J. Teoria della morale. Bari-Roma : Laterza, 1995, p. 88 (original: Erläuterungen zur Diskursrthik, Frankfurt am Main : Suhrkamp, 1991).
[2] Nino, C. S. Ética y derechos humanos. Un ensayo de fundamentación. Barcelona : Ariel, 1989, p. 195.
[3] Chama-se aspecto “expressivo” das leis civis o fato inegável de que as leis, além de permitir ou de proibir algo, expressam uma concepção do homem, da vida, do casamento e, desse modo, têm um efeito educativo de sinal positivo ou negativo.[4] Bento XVI. Discurso à Cúria Romana por ocasião do Natal, 22-XII-2005.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
(Fonte: excerto retirado do site do Opus Dei – Brasil AQUI)
[2] Nino, C. S. Ética y derechos humanos. Un ensayo de fundamentación. Barcelona : Ariel, 1989, p. 195.
[3] Chama-se aspecto “expressivo” das leis civis o fato inegável de que as leis, além de permitir ou de proibir algo, expressam uma concepção do homem, da vida, do casamento e, desse modo, têm um efeito educativo de sinal positivo ou negativo.[4] Bento XVI. Discurso à Cúria Romana por ocasião do Natal, 22-XII-2005.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem.
(Fonte: excerto retirado do site do Opus Dei – Brasil AQUI)
Sem comentários:
Enviar um comentário