«A única desculpa possível para a existência deste livro é o facto de se tratar de uma resposta a um desafio.» Com efeito, às críticas que Chesterton fez a vários pensadores no seu livro Heretics, um deles objectou: ‘começarei a preocupar-me com a minha filosofia quando o Sr. Chesterton nos tiver apresentado a dele.' «Foi talvez incauto - reconhece Chesterton - fazer semelhante sugestão a uma pessoa que não hesita em escrever um livro à mais pequena provocação.»
A resposta da "Ortodoxia", escrita há precisamente cem anos (N. Spe Deus: em 2008), procura "apresentar - de um modo vago e pessoal, mais por meio de uma sucessão de imagens mentais, do que de uma sequência de deduções - a filosofia a que aderi."
É, portanto, o relato de uma aventura intelectual, que parte das suas "especulações solitárias e sinceras". Qualquer leitor poderá rever-se nalgumas das suas intuições, e talvez fique admirado por ser conduzido até realidades profundamente humanas pela mão tão graciosa e, por vezes, surpreendente, de Chesterton. As páginas de "Ortodoxia" são curtas para tanta ideia e tanto humor. É possível lê-las três, quatro e cinco vezes e continuar a ter surpresas.
Mas mais que o sumo de pensamento, o que melhor se descobre à medida que se avança é a personalidade do autor. É um perfil de uma transparência luminosa: um humor refinado, a inteligência aguda e insaciável, a estima pelos opositores, a cultura vasta, e um optimismo nada ingénuo, tornam-se crescentemente presentes.
Dale Ahlquist, presidente da "American Chesterton Society", considera que Chesterton abordou todas as ideologias do século XX: o materialismo, o determinismo científico, o darwinismo filosófico, relativismo moral e o agnosticismo. Combateu tanto o socialismo como o capitalismo, ambos inimigos da liberdade e da justiça na sociedade moderna. «Mas a que coisas ele era favorável? O que defendia? - pergunta Ahlquist. - Defendia o homem comum e o bom senso.»
Chesterton escreve a "Ortodoxia" quando tem 34 anos, de uma vida já muito cheia, e continuará a escrever abundantemente até à sua morte, aos 62 anos. Aprendeu a ler aos 8 anos e foi um aluno distraído. Não frequentou a universidade. Estudou na Escola de Artes. Ateu aos 12 anos e agnóstico aos 16, retornou para a Igreja Anglicana depois de casar com Frances Blogg, em 1901. Aos 48 anos converteu-se ao catolicismo.
Os dados que os seus biógrafos fornecem impressionam. Desde que em 1900 publica os primeiros textos numa revista de arte, Chesterton:
escreveu perto de cem livros, centenas de poemas, cinco peças de teatro, cinco romances e cerca de duzentos contos (incluindo a série de contos policiais do Padre Brown, o padre detective). Chesterton escreveu em vários jornais (e chegou a ser director) conhecendo-se perto de 4.000 artigos. A si mesmo definia-se como jornalista.
Chesterton era um polemista, apaixonado pelo debate de ideias. Participou em diversos debates públicos, divertindo as audiências como só ele era capaz. As suas intervenções eram particularmente notadas, e não só por medir mais de dois metros e pesar mais de cento e quarenta quilos. Discutiu com George Bernard Shaw, H.G. Wells, Bertrand Russell, Clarence Darrow, e outros pensadores contemporâneos. No final da sua vida, parte desses debates foram radiodifundidos. Se vivesse, Chesterton seria hoje, ao mesmo tempo, escritor, conferencista, bloguer, comentador televisivo, e talvez actor (de facto chegou a participar num dos primeiros "westerns" mudos).
Chesterton influenciou muitas pessoas. Ahlquist informa que o seu romance "O Napoleão de Nothing Hill" inspiraria Michael Collins a liderar o movimento pela independência da Irlanda, e que um artigo que escreveu no "Illustrated London News" motivaria Mahtma Gandhi a liderar o movimento que pôs fim ao domínio colonial inglês na Índia.
A força do pensamento de Chesterton parece não diminuir com o passar do tempo. Tem respostas para os problemas de hoje, escreve como se vivesse entre nós. Aí reside o valor de "Ortodoxia". Um valor que é muito enriquecido pela nova tradução para português feita nesta edição - muito melhorada face à anterior tradução de 1956.
Sinal do interesse crescente por Chesterton é que desde 2002, e só Espanha, se editaram 50 títulos. Em Portugal nos últimos cinquenta anos apenas foram traduzidos quinze livros (oito deles da série de contos do P. Brown). Talvez esta nova edição de uma das principais obras de Chesterton (ao lado de "Heretics" e de "The Everlasting Man") desperte o mundo editorial português.
Pedro Gil
Orthodoxy
Autor: Gilbert K. ChestertonEd. Alethêia, Lisboa 2008, 200 Págs
(Fonte: Aceprensa.pt em http://www.aceprensa.pt/articulos/2008/dec/14/ortodoxia/)
Sem comentários:
Enviar um comentário