Os portugueses, todos os portugueses, sofrem um único problema: hábitos de rico. Dívidas, falências, austeridade vêm daqui: acostumámo-nos ao que não podemos pagar.
Dizer isto é escandaloso. "Rico! Eu! Hábitos de rico têm os corruptos, políticos e poderosos, que gastam demais e arruínam o País. Mas pobres e classe média, não! Isso é truque para desculpar os grandes."
A culpa de corruptos e responsáveis é evidente, e muitos estão a sair impunes. Mas ela não chega para explicar um buraco deste tamanho. O problema do País é que todos gastam um bocadinho mais do que podem. Não é muito, mas esse pouco multiplicado por milhões de cidadãos honestos dá uma fortuna. Uma praga de gafanhotos come mais que meia dúzia de elefantes.
Os hábitos de rico não nos devem admirar porque os vemos bem, com outro nome. Chamam-se "critérios europeus". Todos exigem níveis comunitários, que são apenas hábitos de rico. Isso vê-se, primeiro porque essas exigências são as dos nossos parceiros mais abastados que nós, com quem convergimos, mais nos costumes de consumo que nas práticas de trabalho. Segundo, porque evidentemente não o conseguimos pagar, como mostra a dívida nacional que se acumulou inexoravelmente.
Outra prova de que o problema é geral, e não só dos chefes, está nos protestos destes dias. Muitos se indignam pelos cortes que aí vêm. A revolta é compreensível, exigindo que os ricos paguem. Mas ao mesmo tempo ela mostra como todos beneficiámos do trem de vida nacional, que se mostrou insustentável. Protestamos pelas reduções nos transportes, hospitais, escolas, sem reparar que o défice desses serviços, que todos usávamos, manifesta que eles estavam dimensionados para um nível que não podemos suportar. Aliás, quem fez a suposta "greve geral" foram só esses sectores protegidos. Funcionários, serviços públicos e afins podem reclamar, enquanto os mais afectados nunca se dão a esse luxo. Em Portugal os pobres não têm tempo para manifestações.
Tudo isto significa que a questão não está tanto na gravidade da situação, mas na disparidade entre realidade e expectativa. Se o pior dos colapsos económicos se vier a verificar, Portugal terá nos próximos tempos um nível de vida semelhante ao de há 15 anos. Isto é evidente exagero, implicando uma catástrofe que ninguém sensatamente prevê. Mas mesmo que esse cenário tão negro se concretizasse, temos de dizer que nos deixaria numa situação razoável. Aqueles que cá viviam em 1996 não se davam assim tão mal. Como é possível que essa circunstância, então aceitável, agora inspire tanto terror? Simplesmente porque as nossas ambições cresceram imenso nestes 15 anos. Ganhámos hábitos de rico.
Os sinais vêem-se em todo o lado. Hoje só andamos de carro com colete reflector, gasolina sem chumbo, inspecção periódica. Os períodos de chuva são "alerta amarelo na meteorologia". Não se vive sem TV por cabo com dezenas de canais e pelo menos dois telemóveis. Isto para não falar nas múltiplas exigências de directivas europeias, ASAE, etc. Tudo coisas que há anos ninguém tinha, vivendo feliz, e se transformaram em necessidades básicas.
Isso também se manifesta no terrível drama do desemprego, o mais elevado de sempre, ao lado da enorme comunidade imigrante, também maior que nunca, que faz os trabalhos que os portugueses não querem. Dizemos que a solução nacional está na agricultura, pescas e indústria, mas ninguém quer ir para os campos, embarcar ou ser operário. Essas apostas estratégicas só seriam realizáveis com ucranianos, que também fazem funcionar outros sectores.
Encontramo-nos hoje na situação dramática dos nobres falidos, educados numa abundância que entretanto acabou. Esses são mais miseráveis que os seus criados, pois nem sequer sabem o que fazer para governar a vida.
Se o problema é este, qual a saída? Castigar corruptos e terminar abusos é indispensável, mas não chega. É preciso mudar de hábitos. Não há escolha. Falhar no programa da troika e sair do euro implicaria um colapso tal que os sacrifícios actuais pareceriam suaves.
João César das Neves in DN online
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