Os funcionários públicos têm razão para se sentirem perseguidos, sempre chamados à primeira linha dos sacrifícios. É compreensível que imaginem uma conspiração nacional contra eles e é natural o desânimo, indignação, até raiva de tantos trabalhadores honestos, cumpridores e dedicados à causa pública. Nestes momentos não é fácil fazer uma análise serena e profunda da questão, mas é exactamente agora que é mais necessária. Antes de julgar é preciso entender.
A simples observação numérica mostra logo algo estranho. Nos indicadores da União Europeia vemos que Portugal em 1995, primeiro ano comparável, era o sexto país com maior peso dos salários de funcionários públicos no PIB, 12,5%. Acima de nós só os três nórdicos, França e Áustria; a média dos então quinze era 10,8%. Dez anos depois, em 2005, apesar do alargamento, subíramos para o impressionante quarto lugar, com 13,9%, apenas ultrapassado por Dinamarca, Suécia e Chipre. Aí começou a alegada perseguição. A austeridade do último Governo corrigiu em parte a situação insustentável, mas em 2011 a nossa posição é ainda de 12.º, com 11,5%, bem acima da média dos 27 (10,7%) e de parceiros como Espanha (11,1%), Itália (10,7%), Holanda (9,7%) e Alemanha (7,1%). Temos de descer mais.
A função pública é uma vasta realidade, diversificada e complexa, impossível de resumir em alguns parágrafos. Mas dois problemas básicos dominam a instituição e explicam a referida perse- guição. O principal drama dos funcionários públicos não é que ganhem muito, mas que sejam muitos. São imensos, certamente mais de 12% da população activa, valor impossível de suportar. A austeridade nunca consegue actuar nessa dimensão, por ser quase probido dispensar trabalhadores. Assim é obrigada à alternativa de apertar a remuneração individual que não só é injusta mas ineficaz.
Pior ainda, este problema quantitativo é agravado por uma questão de qualidade. Os funcionários não só aceitaram sem protestar que os seus números explodissem, mas permitiram que fosse eliminada qualquer forma eficaz de avaliação relativa. Na função pública existem os melhores e os piores trabalhadores do País, todos tratados da mesma forma com iguais regalias e segurança. Há funcionários vitais e indispensáveis, de quem depende a operação de serviços essenciais, ao lado de parasitas que tomam café e complicam o trabalho alheio. As prateleiras douradas estão por cima de repartições exemplares.
A nossa função pública tem múltiplos serviços fundamentais e milhares de funcionários solícitos, competentes e sacrificados. Mas, como eles sabem melhor que ninguém, também tem múltiplos departamentos inúteis, ociosos e até nocivos, e graves problemas de carreirismo, burocracia, desperdício e abuso. O simples facto de nem se saber bem o total de servidores do Estado é disso sinal evidente. Entretanto as regras internas implicam que o único incentivo para a eficiência é a consciência pessoal do próprio trabalhador, porque os apáticos ganham o mesmo sem riscos.
As causas destes dois problemas de quantidade e qualidade são variadas, mas o próprio corpo de funcionários está longe de ser inocente. Acima de tudo a culpa cai na responsabilidade directa de governantes laxistas e tíbios, que verteram facilidades e benefícios sobre aqueles que davam corpo à sua acção. É verdade que esses políticos saíram incólumes e hoje muitos gozam reformas de luxo, enquanto os antigos subordinados suportam austeridade. Mas estes não se podem eximir de culpas.
Aliás, ao lado do vaivém dos políticos, supostamente responsáveis pelas decisões, a acção e estabilidade do sistema deve-se precisamente aos servidores do Estado e às suas organizações. Foram eles e elas que assistiram passivamente, senão activamente, ao degradar da situação. Não podem hoje acusar do desastre os sucessivos ministros que serviram. Não só porque ganharam muito com a derrapagem, mas sobretudo porque permitiram em silêncio que a sua actividade tão digna fosse degradada. É esta a terrível armadilha dos funcionários.
João César das Neves in DN online
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