Num artigo publicado recentemente num jornal de referência, diz-se que Deus não merece maiúscula, porque mais não é do que um substantivo masculino. Salvo melhor opinião, Deus é, na realidade, um nome próprio, como Moisés, Jesus ou Maomé. O correspondente substantivo abstracto é «divindade» que, esse sim, se pode grafar com minúscula. Mas não Deus, que é alguém e não alguma coisa, uma entidade real subjectiva e não um objecto, nem muito menos uma mera ideia ou vaga suposição.
Não obstante a despromoção divina, admite-se nesse mesmo texto o uso da maiúscula quando o contexto o exija, ou seja, quando se citam crentes ou para eles se destina o texto, mas não quando quem escreve é assumidamente ateu ou escreve para não-crentes, em cujo caso deve prevalecer a minúscula. De adoptar este relativismo, a grafia deverá corresponder ao grau de adesão à realidade significada. Poder-se-ia assim enriquecer a sabedoria popular com mais um provérbio: diz-me que maiúsculas escreves e dir-te-ei quem és!
Se a descrença do jornalista justifica o uso da minúscula no santo nome de Deus, é óbvio que se o dito não acreditar no Butão, nem no Burkina Faso, países que suponho que nunca terá visto, como nunca viu Deus, também deverá escrever com minúsculas as iniciais desses países, não menos abstractos para o seu entendimento do que a sua muito abstracta noção de Deus.
Se pega a moda de uma escrita personalizada à medida dos caprichos do freguês, os monárquicos deverão escrever em minúsculas as iniciais dos nomes dos presidentes da República; os ateus deverão fazer o mesmo com os nomes dos santos; etc., o que permitirá a milagrosa multiplicação da nossa língua: português-republicano, português-monárquico, português-cristão, português-pagão, português-comunista, português-fascista, etc.
A favor desta esquizofrenia ortográfica, invoca-se muito despropositadamente um poeta. Esquece-se, contudo, que não colhe aplicar ao jornalismo as regras que são próprias da escrita literária pois, caso contrário, as crónicas dos jornais deveriam também rimar e cumprir os outros cânones da poética. O jornalista está para o facto relatado como o fotógrafo para a realidade retratada: comparar-se aquele com o literato é tão absurdo como permitir ao retratista as geniais divagações de um Picasso.
Como convém a um texto muito politicamente correcto, apela-se à laicidade para fundamentar um pretenso direito a não acreditar em Deus. É evidente que qualquer cidadão tem todo o direito de acreditar, ou não, em quem quiser, mas não de impor as suas crenças ou descrenças.
Ou seja, mesmo não concordando com quem subscreve tão peregrinas teses, não me é lícito desrespeitar o seu nome, nomeadamente grafando-o com minúsculas, porque uma tal atitude não releva uma legítima expressão de são pluralismo, mas um insulto à dignidade da pessoa referida. O mesmo se diga, por maioria de razão, do nome de Deus: o desrespeito ortográfico não é mais do que uma gratuita ofensa ao próprio e a quantos n’Ele crêem. Essa opção gráfica não se funda na laicidade, mas na intolerância de quem impõe aos outros as suas próprias opiniões ideológicas, porque é incapaz de aceitar e respeitar a diferença. O dogmatismo deste laicismo, que mais não é do que a expressão de uma ignorância – pois a descrença é um não-conhecimento – não é apenas uma ofensa a Deus e à religião, mas também à democracia e à liberdade.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, um jornalista é uma «pessoa que trabalha no domínio da informação […] e cuja actividade consiste em redigir artigos, fazer entrevistas, moderar debates, participar na elaboração dos jornais». Ao jornalista pede-se, portanto, que informe com verdade e objectividade sobre a realidade social, política, religiosa, etc., mas que não se disfarce de improvisado teólogo ou pseudo-filósofo de miudezas, sob pena de ofender o Deus maiúsculo e de se converter num jornalista minúsculo.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
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